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Artigo: Reforma de Guedes e Pacote de Moro tratam pobres como “dano colateral”, por Leonardo Sakamoto.

Por Leonardo Sakamoto.

Paulo Guedes e Sérgio Moro, ministros fiadores do governo Jair Bolsonaro diante do poder econômico e de setores da opinião pública, começaram a colocar seus blocos na rua com textos preliminares da Reforma da Previdência e a proposta de alterações legislativas contra o crime organizado e a corrupção.

Não se questiona a importância da atualização de nosso sistema de aposentadorias, considerando o envelhecimento da população e a situação fiscal do país, muito menos a relevância de mudar uma realidade que produz 64 mil mortes violentas por ano – baixas mais numerosas que muitas guerras mundo afora.

A importância desses temas, contudo, demanda um debate público amplo, aberto e sem afogadilhos, com a participação ativa daqueles que devem mais sofrer as consequências das mudanças. Como os trabalhadores e os moradores de comunidades ocupadas por facções criminosas e as milícias.

Esses grupos não são tratados pelo poder público – e, atenção, isso não é uma crítica apenas ao poder público de plantão, mas também aos outros que o antecederam – como protagonistas, nem mesmo como atores coadjuvantes desses processos, mas apenas figurantes. E o que acontece com figurantes, de quem poucos se lembram, não importa.

Os debates (orientados por uma ideologia excludente que se vende na mídia como bom senso) até aqui tratam as perdas da parcela mais vulnerável como dano colaterais no caminho do ajuste fiscal ou da garantia da segurança pública.

Os mais vulneráveis deveriam ser protegidos em uma reforma que diz querer acabar com “privilégios”. Mas propostas preliminares circulam defendendo que seja pago menos do que um salário mínimo como assistência, como é hoje, a idosos abaixo da linha da pobreza. Ou sugerindo que trabalhadores rurais da agricultura familiar, catadores de babaçu, pescadores artesanais passem a seguir regras de contribuição de quem trabalha em escritório com ar condicionado e não precisou suar desde cedo. Isso sem falar na sugestão para idade mínima de aposentadoria de 65 anos, tanto para homens quanto para mulheres, com o mesmo tempo de contribuição – o que é ignorar a vida reprodutiva e a jornada dupla.

Da mesma forma, qualquer política de combate ao crime organizado digna deveria ser pensada visando, em primeiro lugar, à proteção da vida dos mais vulneráveis. Mas entre as propostas apresentadas no pacote, o item sobre o excludente de ilicitude e a legítima defesa relaxa a punição a agentes de segurança que “em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem”. Por mais que o ministro Moro tenha dito que isso não é uma licença para matar, especialistas em segurança pública afirmam que a medida coloca em risco a vida de moradores inocentes e facilita a execução sumária, sem reduzir o crime. Com maior letalidade policial, consequentemente, o tráfico ficará mais violento, acirrando a ideia de guerra, em favelas onde milhares já são abatidos todos os anos.

Lembrando que vulnerável é tanto a população que morre como dano colateral do conflito armado em comunidades como também o policial honesto que morre como dano colateral de políticas que não são feitas para reduzir as causas da violência, mas conter a tensão oriunda delas.

O período eleitoral deveria ser o momento em que a população seria chamada para discutir grandes projetos para o país, como o futuro da aposentadoria e da assistência social e quais o rumo para a segurança pública. Não houve debate sobre o tema, aliás, não houve debate nenhum. O vencedor não precisou expor suas intenções para a população além de dizer que ia delegar a economia a um economista liberal, permitir que a população se armasse e evitar punição a policiais envolvidos em mortes.

O governo não conta com um texto final tanto da Reforma da Previdência (depende da palavra final do presidente, que deve “abrandar” um pouco a proposta) quanto do pacote de medidas legislativas contra o crime organizado (que deve ser revisado antes do envio ao Congresso Nacional). Depois disso, serão analisadas e, provavelmente, alteradas pelos parlamentares.

A questão é que, uma vez excluídos da direção de sua própria vida, dezenas de milhões de figurantes não serão simplesmente convidados a retomar os papeis que lhes são por direito. Se quiserem evitar que a retirada de mais um naco de seu quinhão de dignidade conquistado ao longo do tempo seja enfileirado como outro dano colateral em nome do bem do país, terão que lembrar em quem votaram para deputado federal e senador e cobrar deles.

A partir do momento em que os “danos colaterais” tomarem as rédeas políticas de suas vidas, aí sim teremos o que muitas pessoas chamaram apressadamente de “renovação da política” – expressão usada, atualmente, para designar pessoas e práticas que, de novo, não têm nada.

 

SOBRE O AUTOR

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

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