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Fronteiras planetárias: colapso da civilização?

Uma civilização que, para sobreviver, depende de petróleo, não merece esse nome

(Carlos Drummond de Andrade, O Avesso das Coisas)

Todo dia lemos na imprensa notícias de devastação ambiental. No Brasil, destaque para a Amazônia, onde o desmatamento aumentou 212% em outubro de 2019 em relação ao mesmo mês do ano anterior, segundo levantamento divulgado em dezembro último pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Em 2018, foram perdidos 187 km². Em 2019, 583 km².

A derrubada da floresta entre agosto e novembro de 2019 foi 100% maior do que no mesmo período de 2018. A partir de maio de 2019, o desmatamento da Amazônia aumentou sem controle. A fuligem das queimadas chegou a escurecer o céu em São Paulo, em agosto. O INPE detectou o maior índice de devastação da floresta das últimas duas décadas — um avanço de 29,5%, em apenas um ano, atingindo 9.762 km². “Estão destruindo o Brasil”, diz o famoso fotógrafo Sebastião Salgado ao questionar o governo e afirmar que é preciso respeitar a Amazônia e as terras indígenas.

Além da Amazônia, tivemos em 2019 o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho (MG), que, em janeiro, arrasou o Rio Paraopeba e superou em mortes a tragédia de Mariana, em 2015. Há 270 mortos, dos quais 13 permanecem desaparecidos. E também o óleo que cobriu as praias do Nordeste e parte do Sudeste. Mais de 3 mil quilômetros de litoral foram afetados.

No mundo, tivemos recorde de temperaturas que em julho de 2019 foram as mais quentes já registradas, a uma média de 16,7 graus Celsius para o planeta, anunciou a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA (NOAA). Reflexo do aquecimento global, nove dos dez meses de julho mais quentes foram registrados após 2005. Uma onda de calor na Europa redefiniu recordes: 42,6 graus Celsius em Paris, 41,8 graus na Bélgica, Alemanha com 41,5 graus e 38,7 no Reino Unido. Dos 20 anos mais quentes do registro histórico, 19 ocorreram desde 2000. A temperatura média global já subiu 1,1 grau desde a era pré-industrial. Apenas nos últimos 40 anos, mais da metade dos vertebrados do mundo morreu, segundo o World Wildlife Fund. Os recentes incêndios na Austrália mataram, até agora, 20 pessoas e meio bilhão de animais!

Em 2019, ocorreram 15 catástrofes climáticas. Sete dessas catástrofes causaram prejuízos avaliados em mais de 10 bilhões de dólares. Furacões, inundações, incêndios florestais, fenômenos meteorológicos extremos, alimentados pela mudança climática, impactaram todos os continentes em 2019, levando à morte e ao deslocamento milhões de pessoas e causando bilhões de dólares de prejuízos, segundo a ONG britânica Christian Aid em relatório publicado em 27 de dezembro último. Somente os incêndios florestais na Califórnia em outubro/novembro passado acarretaram um prejuízo de 25 bilhões de dólares!

Todos esses desastres estão relacionados à mudança climática. Na Argentina e Uruguai, por exemplo, onde as inundações causaram 2,5 bilhões de prejuízo em janeiro, as zonas afetadas tiveram precipitações cinco vezes mais importantes que a média, um ano após terem sofrido uma grave seca. As variações se acentuam com a mudança climática e os solos, tornados mais secos, agravam as consequências em caso de fortes chuvas.

Outro exemplo, o ciclone Idai, que devastou a segunda cidade de Moçambique em março passado, foi reforçado, segundo os cientistas, pelo aquecimento da temperatura do Oceano Índico, e a subida do nível das águas agravou as inundações que vieram em seguida. O mesmo fenômeno ocorreu com o ciclone Fani na Índia e em Bangladesh em maio 2019, com prejuízos estimados em mais de 8 bilhões de dólares.

A organização Christian Aid ressalta, todavia, que as cifras financeiras não dão de forma alguma uma visão global da extensão dessas catástrofes no que diz respeito à população. As inundações no norte da Índia causaram 1.900 mortes, e as de Moçambique, 1.300 mortes. Como sempre, é a população mais pobre quem paga o preço mais elevado dos impactos provocados pelas mudanças climáticas.

Mas os custos financeiros são maiores nos países ricos. Um relatório suíço de meados de dezembro estimou que as perdas econômicas ligadas às catástrofes naturais e aos desastres humanos em 2019 alcançaram um prejuízo anual de 140 bilhões de dólares.

A situação é tão grave que já se fala na possibilidade de colapso da atual civilização. Afinal, a Terra conheceu 5 extinções em massa antes da que começamos agora a presenciar. Há 450 milhões de anos, 86% de todas as espécies foram mortas. 70 milhões de anos depois, 75%. 100 milhões de anos depois, 96%. 50 milhões de anos depois, 80%. 150 milhões de anos depois, 75% de novo. Com exceção da extinção dos dinossauros, todas envolveram mudanças climáticas causadas por gases de efeito estufa (A Terra Inabitável, Uma História do Futuro, David Wallace-Wells).

Hoje, lançamos carbono na atmosfera a um rimo 100 vezes mais rápido do que em qualquer época anterior ao início da industrialização. Metade do carbono lançado à atmosfera devido à queima de combustíveis fósseis foi emitido apenas nas últimas três décadas. Mantendo o atual padrão de emissões, chegaremos a mais de 4º C de aquecimento até o ano 2100. Isso significa que muitas regiões do mundo ficariam inabitáveis devido ao calor direto, à desertificação e às inundações.

Pelas projeções das Nações Unidas, teremos 200 milhões de refugiados do clima até 2050. Outras estimativas são ainda mais pessimistas: 1 bilhão de pobres vulneráveis sem condições de sobrevivência. O Protocolo de Kyoto, firmado em 1997, considerava que 2% C de aquecimento global era o limiar da catástrofe: cidades inundadas, secas destrutivas, ondas de calor, furacões e monções, enfim os antes chamados “desastres naturais” vão se tornar regras e não exceção. Em 2016, o Acordo de Paris estabeleceu o aumento de 2º C como meta global a ser evitada.

Hoje, muitos cientistas afirmam que 2º C seria o melhor resultado possível. Se mantido o atual ritmo de emissões de carbono, chegaríamos a 3,2º C de aquecimento, o que acarretaria o colapso das calotas polares e a inundação da maioria das cidades costeiras. A elevação prevista, até o fim do século, de meio metro no nível dos oceanos, acarretará o abandono de dezenas de cidades à beira mar.

Outros cientistas afirmam que as previsões do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change) são conservadoras. Mesmo cumprindo as metas de emissão fixadas no Acordo de Paris, poderemos chegar a 4º C de aquecimento, com florestas transformadas em savanas, trazendo riscos sérios à habitabilidade do planeta.

Afinal, com 2º C, as calotas polares começarão a desmanchar, 400 milhões de pessoas mais sofrerão com a escassez de água, cidades na faixa equatorial do planeta se tornarão inabitáveis, e ondas de calor matarão milhares de pessoas no verão. Com 3º C, a Europa meridional viverá uma seca permanente, as áreas queimadas por incêndios florestais todo ano dobrariam e nos EUA sextuplicariam. Com 4º C, teremos 8 milhões de novos casos de dengue todo ano só na América Latina e crise alimentar em todo o mundo. A mortalidade ligada ao calor se elevaria em 9%. Aumentariam muito os desastres naturais como enchentes, e os conflitos e guerras poderiam duplicar. Globalmente, os prejuízos passariam de 600 trilhões de dólares, mais riqueza do que há no mundo hoje (A Terra Inabitável, op.cit.).

Nada impede que essa tendência seja alterada, tudo depende das decisões políticas dos países, de seus governos e suas empresas. Mas se os próximos trinta anos forem iguais aos trinta anos passados, até o fim deste século regiões inteiras da Terra se tornarão inabitáveis, com perspectivas de devastação da espécie humana.

O sistema climático que conhecemos até hoje está morrendo. Se não houver reversão nas emissões, os efeitos vão se agravar à medida em que o planeta esquentar de 1º C para 1,5º C e muito provavelmente para 2º C e além. A atual era geológica está sendo chamada Antropoceno, pois é a ação humana que provoca a redução drástica da capacidade natural de o planeta absorver o carbono e transformá-lo em oxigênio, o que implica temperaturas mais quentes, mais incêndios florestais, menos árvores, mais carbono na atmosfera, um planeta mais quente. Segundo Paul Crutzen (Prêmio Nobel de Química 1995), ”a influência da humanidade no Planeta Terra nos últimos séculos tornou-se tão significativa a ponto de constituir-se numa nova época geológica”.

É claro que os pobres são mais vulneráveis e vão sofrer mais do que os ricos. Trata-se de um problema de justiça ambiental ou, em outras palavras, de apartheid ambiental. Os países com menor PIB serão os mais quentes. Mas os países desenvolvidos vão passar a receber os mosquitos da malária e do dengue que hoje desconhecem.

Segundo o Banco Mundial, 800 milhões de pessoas, só na Ásia Meridional, sofreriam declínio drástico nas suas condições de vida até 2050. Diversas pesquisas estimaram que cada grau de aquecimento custe a um país temperado como os EUA cerca de um ponto percentual do PIB. Com 1,5º C, o mundo seria 20 trilhões mais rico do que com 2º C. Um aquecimento de 3,7º C acarretaria um prejuízo de 551 trilhões, quase o dobro da atual riqueza global de 280 trilhões de dólares. Recordemos que o atual padrão de emissões, se continuar, levará a um aumento de 4º C até 2100.

Outras pesquisas estimaram que 150 milhões mais de pessoas morreriam só da poluição do ar se o aumento da temperatura global passe, como é provável, de 1,5º C a 2º C. Segundo o IPCC, centenas de milhões de pessoas correriam risco de vida.

Enquanto a grande maioria dos cientistas do mundo afirma que está comprovada a existência das mudanças climáticas e que a causa é a ação humana, os chamados “céticos”, alguns financiados pelas empresas de petróleo, afirmaram primeiro que não existiam as mudanças climáticas e, depois, que seriam causadas por ciclos naturais e não pela ação humana. Mas em todas as instâncias e organismos científicos internacionais isso já é ponto indiscutível. A questão não é mais se existe ou não, e a causa já está confirmada. A questão é o que fazer e como fazer.

A conta pela demora em tomar as decisões corretas sobre o clima chegará para o mundo em 2030 no valor de 26 trilhões. A sociedade contemporânea é uma sociedade de desperdício de energia, de produção, de consumo. Só um país – os EUA – consomem 1/3 da energia de todo o mundo. O mundo não vai mais sobreviver sem a sustentabilidade ambiental. E isso é decisão de políticas públicas. As atitudes individuais de mudar o estilo de vida importam muito pouco. Vejamos, por exemplo, o consumo de água no Brasil. A agricultura consome cerca de 72%. A indústria, cerca de 9%. Mas as campanhas de economia de água visam apenas o consumidor urbano que representa só 8,6% do consumo total.

A civilização do combustível fóssil ameaça a sobrevivência do homem no planeta. Produz calor letal, fome pela redução e encarecimento da produção agrícola, destruição das florestas por incêndios, esgotamento da água potável, morte dos oceanos, tufões, inundações, ar irrespirável, pragas, colapso econômico, conflitos climáticos, guerras, crise de refugiados. É a geopolítica do petróleo que explica o bloqueio econômico e político da Venezuela pelos EUA e as ações militares norte-americanas contra o Irã, que tendem a se agravar pelas bravatas de Trump em ano eleitoral.

As fontes de energia renováveis tornaram-se competitivas, mas as forças econômicas do mercado e os governos por elas controlados sabotam a transformação da energia fóssil poluidora em energia renovável que, entretanto, vem crescendo consideravelmente. As energias renováveis crescem mais rápido, mas os fósseis dominarão a matriz energética até 2040. Os combustíveis fósseis – petróleo/ gás/carvão – deverão constituir ainda três quartos da matriz energética mundial em 2040. Por outro lado, os setores populares protestam em caso de taxas ou aumento nos preços da gasolina, diesel, gás e carvão. Foi o caso, entre outros, das manifestações populares na França (coletes amarelos) que começaram por um protesto contra a “taxa verde” sobre a gasolina e o diesel.

O homem é o único animal que destrói seu habitat, o que coloca em questão sua racionalidade de homo sapiens. Tudo em função da produção econômica baseada na busca do lucro máximo. No Brasil, o agronegócio, as mineradoras, a pecuária, os garimpeiros, as madeireiras, os grileiros destroem a floresta amazônica visando ao lucro imediato. Ignoram – porque querem ignorar – que a Amazônia envia os “rios voadores” de umidade, sem o que a região sudeste seria transformada em savana e, depois, em deserto, na mesma forma que os desertos existentes na mesma latitude do sudeste brasileiro, como Atacama, no Chile, por exemplo.

Entre os fatores que causaram o colapso de civilizações, o primeiro deles é a destruição ambiental – o ecocídio, que foi o caso da Ilha de Páscoa, no Pacífico. O escritor Jared Diamond, autor do famoso livro Colapso – Como as Sociedades Escolhem o Fracasso ou o Sucesso, relata o contraste impressionante entre a ilha de Páscoa e o Japão, ambas sociedades complexas que floresceram em ilhas do Pacífico. Os habitantes de Páscoa (Rapa Nui, na língua local) ficaram famosos pelas gigantescas estátuas de pedra que construíram, os moai. Mas a Ilha de Páscoa foi completamente desmatada. A falta de árvores provocou a fome e mortandade em massa. Já o Japão na mesma época, entre os séculos 17 e 18, deu resposta diferente: o governo iniciou um reflorestamento em massa que fez do Japão um dos países mais verdes do mundo – 69% de seu território é coberto por florestas hoje. Ressalte-se que o Código Florestal japonês não permite a conversão de florestas – tanto as estatais como as privadas – exceto em circunstâncias excepcionais.

As lições do passado devem ser aprendidas sob pena de repetição dos erros cometidos. São cada vez mais claros os sinais de que a humanidade vem se aproximando perigosamente do que se chamou “fronteiras planetárias”, entendendo-se estas como os limiares físicos além dos quais pode haver mudanças bruscas e colapso total da capacidade de o ecossistema global suportar as atividades humanas. (J. R. McNeill, Something New Under the Sun).

Para um grupo de pesquisadores da Universidade de Cambridge, os fatores para um possível declínio da humanidade estão visíveis: as mudanças climáticas, a degradação ambiental, as desigualdades econômicas e governos autoritários que atropelam os direitos civis, sociais e culturais. O “capitalismo tardio” e seu perverso modelo neoliberal não apenas exploram a maioria da população mundial, mas também ameaçam a sobrevivência do homem na Terra.

Trata-se de uma crise de civilização. O estilo de vida que herdamos da sociedade industrial está ameaçado. O futuro será baseado em energias renováveis ou não haverá futuro. E nenhuma tecnologia cairá em nosso colo como um Deus Ex Machina para nos salvar se não houver em tempo hábil mudanças estruturais na direção do desenvolvimento sustentável.

 

Fonte: Carta Maior

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