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Presidente anuncia uma tragédia ainda maior do que a que já vivemos nas ruas e estradas

No Brasil, a segurança viária é um tema tão delicado e importante quanto o da segurança pública. Se anualmente 60 mil pessoas são assassinadas por armas, outras 50 mil são vítimas fatais de incidentes no trânsito. Mais do que mortes, a guerra no trânsito é responsável por deixar anualmente mais de 400 mil pessoas com sequelas, o que transforma a questão em um grave assunto de saúde pública. O custo de atendimento e assistência a tantas vítimas superlota nossos hospitais, onerando severamente os sistemas públicos de saúde e de seguridade social, custando bilhões à economia e aos cofres públicos. A redução destas estatísticas deveria ser assunto urgente e prioritário para todo governante sério.

Mas o presidente Jair Bolsonaro parece ser indiferente a esses números e quer aumentá-los a qualquer custo.

No seu primeiro pronunciamento ao vivo em redes sociais, no início de março, Bolsonaro dedicou boa parte do seu papo para o anúncio de duas medidas absurdas e temerárias para a segurança no trânsito: o desligamento de radares nas rodovias federais e o aumento do tempo de validade da Carteira Nacional de Habilitação.

A primeira delas foi confirmada dia 31 de março de 2019: por sua ordem, o Ministério da Infraestrutura cancelará a instalação planejada de 8 mil novos radares nas rodovias federais. Além disso, afirmou que pretende revisar os contratos de radares existentes, de forma eliminar das rodovias as chamadas “lombadas eletrônicas”. Segundo o mandatário, esses equipamentos não servem para reduzir acidentes, mas só tem fim de arrecadação para o Estado. A famosa “indústria da multa”, chavão repetido à exaustão por ele e pela elite motorizada que não consegue respeitar as regras do código de trânsito brasileiro, é um dos maiores mitos urbanos. Quando era deputado, ele chegou a gravar um vídeo reclamando de simples lombadas eletrônicas da rodovia Rio-Santos. O detalhe é que ele gravou o vídeo ao celular enquanto dirigia, ou seja, cometendo ele mesmo uma imprudência ao volante, numa infração passível de multa.

O que existe de fato é a indústria da impunidade no trânsito, que faz com que os motoristas dirijam sem medo de desrespeitar as regras de circulação previstas na lei. A grande maioria das infrações que ocorrem no trânsito infelizmente não gera autuações. Mas ao se depararem com um radar eletrônico, uma espécie de “árbitro de vídeo” do trânsito, que fiscaliza e autua automaticamente, a chiadeira em tomar multas de trânsito é seletiva: a lei nunca foi para todos. O motorista infrator, potencial causador de mortes e mutilações, interpreta convenientemente a personagem da vítima oprimida pelo Estado. O discurso de rigidez na aplicação da lei é de “tigrão” para o cidadão vulnerável nas ruas, mas de “tchutchuca” para punir o criminoso de classe média e alta que não sabe sequer controlar a velocidade de um carro.

Com tais medidas, Bolsonaro trabalha ativamente pela impunidade dos infratores de trânsito. É mais do que comprovado que a maioria das mortes nas ruas é resultado direto da imprudência de condutores de veículos motorizados. A alta velocidade não é necessariamente a causa dos incidentes, mas influencia diretamente na consequência dos mesmos. Não é preciso ser nenhum gênio da física para saber que, quanto mais alta é a velocidade de um veículo, bem maior é a energia e a letalidade resultante dos impactos. Ao prometer o desligamento de radares e abrir mão de fiscalizar os motoristas, Bolsonaro fará com que as estradas brasileiras voltem imediatamente a ser uma grande terra de ninguém. Livres de responsabilidades e do escrutínio eletrônico, os “pés-de-chumbo” estarão liberados para exercer livremente a imprudência sem medo de ter que responder ou pagar por isso. Assim, a morte pede passagem.

Garantir a impunidade dos motoristas imprudentes já tinha sido objeto de projeto de Jair Bolsonaro como deputado. Em 2011 ele próprio apresentou um projeto para dobrar de 20 para 40 pontos a pontuação necessária para suspensão da Carteira Nacional de Habilitação. A proposta, esdrúxula como tudo o que vem de sua atuação parlamentar, tinha sido arquivada e descansava em paz. Agora, como presidente da República, ele sinalizou que pretende reativar a proposta de passar a mão na cabeça de infratores reincidentes, permitindo-os infringir a lei o dobro de vezes antes de serem punidos com a suspensão do privilégio de dirigir.

O segundo anúncio do presidente, de aumentar o tempo de validade da CNH de 5 pra 10 anos, é também uma medida temerária para a segurança nas vias. O que parece ser apenas uma medida de desburocratização, na verdade atende somente à reclamação de tios do churrasco que consideram absurdo ter que provar ao poder público que seguem fisicamente aptos a conduzir veículos automotores. Dessa forma, o governo atenua a fiscalização sobre a condição dos motoristas, mantendo nas ruas condutores que possivelmente não deveriam ter sua habilitação renovada. Com mais motoristas imprudentes nas ruas e sem fiscalização eletrônica, o resultado não deverá ser outro que não o aumento do número de mortes no trânsito. E que ninguém chame esses acontecimentos de “acidentes”, pois na grande maioria são assassinatos que poderiam ser evitados se o rigor da lei chegasse de fato aos criminosos atrás dos volantes. Acidentes de trânsito no Brasil são raros, mas crimes de trânsito são regra.

 

Carros são armas

Os números parelhos de assassinatos e de mortes no trânsito são mais do que uma coincidência. Carros e armas de fogo têm mórbidas semelhanças: ambos são objetos de intimidação física que guardam lugar de destaque especialmente no imaginário masculino. Ambos instrumentalizam um exercício de poder que não raro é utilizado de forma tóxica e imprudente por quem os possui. Enquanto a violência das armas vitimiza a população negra e periférica, a grande maioria das vítimas do trânsito é de cidadãos vulneráveis, como pedestres, ciclistas e motociclistas, que se locomovem no espaço público sem a proteção caríssima das carcaças metálicas. A vontade de Bolsonaro de legislar a favor dos dois produtos é sintomática de um pensamento explicitamente hegemônico.

Se carros matam tanto quanto armas, as propostas de afrouxar a fiscalização e flexibilizar as regras da carteira de motorista têm um paralelo com a obsessão de Bolsonaro em liberar o porte de armas. Facilitar o uso de armas de fogo pela população civil sempre foi a sua principal bandeira política. Logo na segunda semana de seu mandato, ele assinou decreto flexibilizando diversos critérios para a compra e posse de armamentos. Ao defender a medida, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, General Augusto Heleno, convenientemente comparou a posse de arma e com a habilitação para dirigir carros. Infelizmente, nos dois casos, a autoridade confunde direito com privilégio. Comete o erro de tratar o manejo de objetos de alto potencial mortífero como um direito individual e irrestrito para qualquer “cidadão de bem”, e não como uma habilitação específica para pessoas comprovadamente aptas. Raciocínio para lá de perigoso.

Por ora, as exigências para a obtenção de uma Carteira de Nacional de Habilitação não são poucas: boas horas de aulas práticas e teóricas, prova de conhecimento da legislação, exame psicotécnico e prova prática na rua. São critérios mínimos de conhecimento necessário para quem opera uma máquina mortífera. Não por acaso é tão grande o mercado paralelo de compra de CNHs. O esforço de flexibilizar tanto o porte de arma quanto a Carteira Nacional de Habilitação terá a mesma consequência nefasta: apenas permitirá que mais pessoas despreparadas matem.

Ainda no mesmo dia em que dois jovens mataram oito pessoas na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, o segundo filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, ao invés de demonstrar a mínima consideração pelas vítimas, apressou-se em minimizar a influência da posse de armas na tragédia: “A gente sempre cai na argumentação de que arma é um pedaço de metal, faz tão mal quanto um carro. Ou seja, para fazer mal, precisa de uma pessoa por trás dela. Armas não matam ninguém, quem mata são pessoas”.

Por linhas para lá de tortas, o Eduardo até tem um pouco de razão. Quem mata são as pessoas, e tanto o carro quanto a arma são instrumentos para isso. Mas ele se esquece que, antes de portar uma arma ou de ligar um carro, os cidadãos precisam estar muito cientes de que há uma enorme responsabilidade social envolvida no manejo desses “pedaços de metal”. Para acabar com a verdadeira carnificina que ocorre diariamente em nossas ruas, avenidas e estradas, de nada adiantará fechar os olhos para a fiscalização, ou deixar de punir de forma correta os infratores da lei. Nossos governantes (do presidente aos prefeitos) falham em estimular opções de transporte além do carro particular, falham em construir políticas e estruturas sérias de proteção a pedestres e ciclistas, estes sempre vulneráveis frente ao açoite constante dos possantes motorizados. A atuação direta do presidente Jair Bolsonaro em defesa da impunidade no trânsito é irresponsável, criminosa e vai na contra-mão de qualquer compromisso sério com a vida humana.

 

Fonte: Le Monde Diplomatique

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