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“Muitos bancários se tornaram grandes artistas”

""Bancário do Bradesco há 53 anos e renomado artista conquistense, Carlos Jehovah de Brito Leite, completou 71 anos no último sábado (07). Reconhecido nacional e internacionalmente por seus livros, poemas, e principalmente por sua obra “Auto da Gamela”, Carlos Jehovah é o nosso entrevistado desta edição d’O Piquete.

Quem surgiu primeiro: o Carlos Jehovah artista ou bancário?

O artista. Inicialmente, a atividade bancária impedia que os movimentos artísticos aflorassem em seu recinto de trabalho. Mesmo assim, a família Leite, Gondin e Brito era voltada para cantadores de côco, de feira livre, e nós trazíamos já, os cinco filhos, esta tendência para a cultura, como o teatro e a literatura popular. Desde 1917 nós temos registros dessas atividades artísticas na cidade, e meus pais já participavam da ala recreativa popular, que era o cinema da época. Era a televisão do momento, pois as pessoas se reuniam para as cantorias na rua, e à noite, sob a luz do luar cantavam e declamavam. Meu pai recitava todos os poemas, de cor, da obra Espumas Flutuantes, de Castro Alves, e exigia que os filhos seguissem as mesmas pegadas. Nós tínhamos que memorizar como lição, e assim a família desenvolveu mais a cultura que profissões liberais e comerciais. A família se voltou mais para as coisas do espírito e o movimento das emoções humanas. Nós passamos a desenvolver a atividade cultural com maior plenitude nos idos de 1955, semelhantes às atividades dos nossos pais e avós.

Nas boiadas que meu pai levava com vaqueiros para Camamu, via chão batido, saindo de Conquista, Jequié e Feira de Santana, os cantadores cantavam as modas sertanejas nos lombos dos burros, e isso ficou na memória dos mais antigos como meu pai, que era cantador exímio e trovador naquela época. Era herança dos meus avós. O “Auto da Gamela” é inspiração de dois cantadores filhos de dois trovadores. Esechias Lima e Carlos Jehovah são filhos catingueiros, e por isso tem essa veia voltada para a cultura popular.

Como foi conciliar sua vida de bancário com a vida de artista?

Foi muito difícil, pois os gerentes não entendiam a importância, mas depois das entrevistas e do contato com dirigentes, eles aplaudiram as programações nos aniversários do banco. Na época das comemorações nas agências, os cantadores faziam-se presentes e nós falávamos dos progressos do banco em versos de cordel. Meu pai escrevia e eu declamava versos de cordel nas reuniões no Banco Econômico da Bahia. Em seguida veio o Excel, depois o Bilbao e, finalmente, o Bradesco. Hoje a eletrônica e a tecnologia sufocaram os movimentos populares nos bancos e empresas, pois era um ato comum antigamente. Sempre havia um registro cultural nessas festividades.

Em 1975, nós promovemos o primeiro recital de piano dentro do banco, coisa inédita no Brasil. Foi convidado Carlos Porto, músico conquistense e exímio pianista, que passou o dia executando canções clássicas e populares do repertório nacional. Foi um evento que ficou marcado na memória. Ele não repetia uma música sequer. Hoje, a televisão e os meios eletrônicos impedem qualquer manifestação desta natureza. A não ser nos grandes centros, quando o Bradesco patrocina eventos com grandes cantores mas apenas para um público seleto.

Até os anos 80 nós tínhamos uma comédia chamada de “Divórcio na Roça”, logo que foi implantado o divórcio. As pessoas riam do início ao fim com o ‘descasamento’ de dois matutos, e nos tempos do Banco Econômico o expediente parou para ver a apresentação. Esechias Lima foi o autor do texto, e músicas de diversos cantores de Conquista, como Lucia Lula, Netinho, Maria do Carmo Botelho. Esses compositores contribuíram bastante para a prática musical nas empresas nas décadas de 60 a 80. De lá para cá, morreu o teatro e a música nos grandes eventos reservados para os aniversários dos bancos e empresas. Mas a gente plantou a semente que cresceu e deu bons frutos.

Qual a obra que o Sr. teve mais carinho ao longo da sua trajetória?

O “Auto da Gamela” é a principal. Além dele, são sete livros publicados, sendo três fora de Conquista e um premiado no Rio de Janeiro. O Auto é a obra que tenho mais carinho, pois marco um período difícil de censuras, prisões, e teve o prefácio de Rachel de Queiroz e Ivan Proença. Nesta época, o elenco era composto por 10 atores do Banco Econômico, e três pediram demissão do elenco para não serem expulsos do banco. O panorama cultural transformou-se de uma hora para a outra para atos de prisão e violência.

O Auto teve uma repercussão muito grande no Rio de Janeiro, Brasília, e somente no Teatro Vila Velha foram 22 exibições. No Teatro Castro Alves foram duas apresentações com a entrega de um prêmio de R$ 100 mil para os atores da Finos Trapos, que são filhos de Conquista e estudantes de dramaturgia em Salvador. O texto é bastante atual, comovente, e motiva a plateia a sorrir e a chorar.

Existe diálogo entre a produção artística e sua vida no banco?

Dos últimos cinco anos para cá, segundo informações, o Bradesco defende a cultura popular através de uma fundação. Só isso. Infelizmente Conquista não tem acesso, não existe apoio local.

Quais as premiações que mais se destacam na sua carreira como artista?

Já fomos premiados em Cuba e também reconhecidos pela Assembleia Legislativa da Bahia, com a Comenda 02 de Julho, quando ganhamos uma medalha de reconhecimento pelo esforço dos atores, anônimos, cantores, escritores, e me trouxe grandes alegrias. Ninguém esperava que Conquista passasse da cidade de jagunços para cidade da cultura. Não foi um reconhecimento pessoal, e sim coletivo, pelo sucesso da obra.

O livro Cotidiano foi lançado durante a ditadura militar, o livro Cicatrizes (?) foi publicado em Salvador, e outros recitais de poemas considerados subversivos na época. Daqui nasceram festivais de poema, de música, teatro, com artistas que saíram daqui para brilhar pelo país. Todos eles foram marcados por grandes lutas populares que não se vê mais.

Como o Sr. vê as manifestações culturais de hoje?

Hoje vemos um vazio muito grande nos movimentos populares e um descrédito das diferentes manifestações pelos acontecimentos políticos. Na ditadura as pessoas resistiram, foram à luta e conseguiram pontilhar a história da Conquista com grandes fatos, que nos trazem grandes emoções, que nunca serão esquecidas e passarão para gerações futuras.

O Sr. acredita que o bancário deve buscar motivação e inspiração para o seu lado artístico também?

Muitos bancários se tornaram grandes artistas, como Agostinho Neto, que foi um grande ator e diretor de teatro; Carlos Henrique Furtado, que se tornou diretor da TVE no Rio de Janeiro; são nomes que levaram nossa cultura e deixaram marcados grandes acontecimentos de nossa cidade. Hoje temos uma camada de intelectuais bastante reduzida.

Nos nossos dias, a educação era quase precária. Não tínhamos faculdades nem universidades. Os movimentos nasciam das associações, das manifestações do povo, da criação coletiva. Hoje, temos um movimento universitário mas também uma inércia, as pessoas esqueceram do teatro, da música, da literatura, e se produz muito pouco em comparação com a década de 70. O Festival de Teatro de Conquista, por exemplo, tinha projeção nacional. Tínhamos também festivais de música de alta qualidade, com Elomar Figueira e Xangai, que levaram o nome de Conquista para o país; o Festival de Poesia da Escola Normal, as gincanas culturais, e a cidade vivia um momento difícil, com o governo da direita. Mas, ainda assim todo o movimento nascia da espontaneidade dos jovens da época, dos professores. Hoje assistimos uma espécie de descrença popular. Com a internet, em vez das pessoas assistirem e produzirem, vão até o computador, que oferece mais comodidade. Esperamos que as escolas, centros educacionais, sindicatos, voltem-se para o teatro e para a música, pois são instrumentos de pregação do amor ao próximo, da luta social. O teatro tem uma arma poderosa, que é se comunicar com a plateia no momento da ação, o que não acontece com a televisão. Temos a expectativa de que o teatro ainda voltará com mais pulso e mais garra que nos anos 70.

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