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Artigo: Autocrítica (o metrô de Paris), por Carlos Nascimento

Confira o artigo do mestre em Ciências da Comunicação, bancário da CEF/Candeias e delegado sindical, Carlos Nascimento.

Verão em Paris. Dentro de um vagão de metrô lotado e sob um calor dos infernos, observo a entrada de uma mulher que traz pela mão um garoto de cerca de dez anos. Ela o acomoda num raro assento que vaga, e ele, como uma criança desses tempos, não se dispersa do game que tilinta em seu smatphone. Como mãe atenta que parece ser, reclama coisas com o filho, mas também lhe acaricia, lhe dá amor. Tudo normal no metrô de Paris, da Paris dos franceses. Ela branca, cabelo loiro, escorrido, quase incolor. Ele preto, cabelo rastafari, tênis e calça jeans. E eu, atento ao normal que me incomoda.

Longe de casa, no aperto do trem, estou sozinho a fitar aquela cena que não me compete. Distante de meu hábito, me pego a estranhar algo com o qual sequer deveria estar a me deter. Um “qualquer coisa” que não importa, mas que naquele momento – naquela cidade – me afronta, por mais indesejável que seja admitir esse fato.

Afora a Torre, o Museu, o Arco e as vitrines, se misturam ali africanos, hindus, asiáticos, árabes, latinos e outros tantos de origem incerta. Uma infinidade de etnias que, quando não turistas, habitam aquela fascinante Babel. Espanto certo para visitantes que esperam ali encontrar Bardots e Delons a cada esquina, charmosamente sentados a fumar ou a comer croissants em seus cafés.

Mas afinal, não é isso que me surpreende. A mulher branca e o menino negro no metrô, na hora do rush. Figuras comuns, corriqueiras, cotidianas. Este desconforto que não quero sentir no olhar. Impróprio para um brasileiro. Para um baiano que tanto ama, declama e valoriza suas origens e sua cultura.

Seria necessário ir a um lugar tão distante para me defrontar com um preconceito tão latente? Como posso eu, vindo de onde venho, me prender a observar a policromia daquela relação? Como posso sustentar qualquer pensamento ou discurso humanista, se ainda me apreendo a este tipo de cena? Ridículo me sinto. É só uma mãe com seu filho! Nada mais deveria importar.

Mesmo que possa haver alguma severidade em meus questionamentos, me pergunto até que ponto tenho estas dissociações bem resolvidas em mim. Será que lá, ao final de tudo, no fim da fila, consigo mesmo me desvincular de todo tipo de preconceito?

A moça do metrô me obriga a responder que não. Apesar de militar nesse campo, preciso reconhecer em meu íntimo que seria bastante difícil abandonar muitos dos confortos que esta sociedade patriarcal me proporciona. Confortos sobretudo comportamentais: despreocupações de aceitação, de estética, de linguajar ou de ordem familiar. Coisas pequenas, naturalizadas ao ponto da impercepção geral, mesmo para os que são costumeiramente prejudicados por estas.

Minha geração foi criada sabendo que homossexuais eram pessoas desajustadas e sem-vergonha, merecedoras de zombarias e desprezo. Que, desde a princesa Isabel, este era um Brasil sem preconceitos de raça e que, na verdade, se ainda havia algum racismo, estava nos próprios negros que tinham dificuldades em se aceitar neste país de iguais. Que Jesus era um homem branco, de olhos azuis e madeixas lisas, dignas de uma campanha de shampoo Colorama. Também que pedintes eram pessoas perigosas e queriam dinheiro para tomar cachaça ou fumar maconha. E que mulheres que exerciam sua sexualidade de forma pouco condizente com a retidão moral carregavam a pecha de galinhas, ou coisa que se assemelhe.

Era comum ouvir de meus avôs e avós – nem tão brancos – frases como: “Esse menino Gil é um preto bom”, “Não namore gente de cor. É preciso limpar a família” ou “Uma mulher não é nada sem um homem”. Não que isso enseje culpa na minha formação ou na dos meus ascendentes, educados todos conforme verdades forjadas ao longo de séculos de dominações que se perpetuam. Aliás, importa lembrar que muitas destas expressões, disfarçadas sob novas roupagens, tem voltado à tona como se representassem certezas que se encontravam adormecidas sob o manto da busca pela equidade e do equilíbrio social, foco de movimentos e esforços diversos ao longo de muitas décadas.

Embora a maturidade e a ciência de mundo me tenham afastado de ideias como estas, evitando, por exemplo, que as tenham repassado a educação de minhas filhas, o metrô de Paris me faz lembrar que algumas dessas percepções dificilmente se desprenderão do meu ser, ainda que muito me esforce para me desfazer desta nociva e involuntária memória.

Fatos como esses reforçam minha convicção de que, por mais que inquietações me aproximem de demandas que não me são próprias por origem, meu lugar de fala me ilegitima este direito de forma plena. Acompanhando as colocações da escritora Djamila Ribeiro[1], o reclame do espaço e da representatividade das minorias sociais deve, em essência, partir destas: detentoras da insubstituível vivência e das heranças que lastreiam o seu reconhecimento como sujeitos políticos. Contudo, a contribuição de pessoas distantes destas realidades se faz importante, pela possibilidade destas mesmas poderem levar essas reflexões a espaços onde estas minorias não conseguem se fazer representar.

Conforme observa Jaqueline Conceição[2], um dos maiores obstáculos a ser vencido é o fato de que as sociedades americanas permanecem a reproduzir modelos baseados na prevalência do colonizador europeu como ideal a ser atingido. Este objeto de realização está inserido nas mais diversas formas de formação do pensamento ocidental. O homem branco representa – de forma consciente ou não – o lugar onde se quer chegar, seja pela mulher que se emancipa ou pelo negro que se descola de sua condição originária. O referencial, de uma forma ou de outra, tende a ser este personagem que se espera reproduzir ou agradar.

Dentro deste contexto, me colocar a questionar e a defender temas que possam parecer longínquos de meu fenótipo ou de minha realidade imediata, remete ao fato de que penso que não há ser humano completo quando limitado a sua condição individual. Que os flagelos ou as alegrias de muitas pessoas inevitavelmente ecoam – por bem ou por mal – na qualidade de vida de todos, mesmo dos que se entendem como mais isolados e protegidos em sua condição abastada.

Pôr em xeque minha postura em relação a estas realidades me coloca a pensar que, assim como em meu caso, muita de nossa noção de coletividade esbarra no reconhecimento efetivo das igualdades inatas a todos. Entendo que muitas das máscaras que a sociedade contemporânea dispõe, permanecem a proteger pessoas de fatos que realmente não desejam enxergar. São lentes que mantém o mundo sob o Ray-ban de uma tranquilidade construída, idealizada para o bem dos que menos sofrem com as cruezas do Sol. Uma das reflexões que José Saramago provoca no livro Ensaio sobre a cegueira[3]. Fica a pergunta: seria necessário passar por um apagamento como o proposto pelo escritor para nos enxergarmos nus e nos reconhecermos como iguais?

Por ora agradeço à moça e ao garoto do metrô, que, embora não tenham percebido o meu desconforto com sua simples felicidade, me ajudaram a entender que ainda tenho uma longa jornada por cumprir na desconstrução de arquétipos que muitas vezes sequer reconheço valorizar, mas que invariavelmente interferem na minha relação com este mundo plural.

 

[1] RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

[2] Doutoranda em Antropologia Social pela UFSC (2019) e Mestre em Educação: História Política e Sociedade (2014) pela PUC-SP.

[3] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. Editora Companhia das Letras, 1995.

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