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Artigo: um ponto, um conto, por Carlos Nascimento

Por Carlos Nascimento*

Noite dessas comentava o cobrador ao me ver largado, aos capengues, no encosto da cadeira do buzu: “Que não faz um sujeito por uma xoxotinha, não é?”. É. Que não faz um sujeito? Que faz um sujeito? Hoje, aqui, mais uma vez me vejo só, no ermo deste ponto, numa noite molhada, esperando o ônibus que não passa. Haja amor, haja mulher, haja trepada que justifique tanto risco.

A toda hora olho em redor. E o ladrão? Maluquice essa de ficar até tão tarde namorando. Tentação! Se me pegam aqui, já era! Me tomam os três vales-transportes que levo num bolso e o Casio Digi Paper que escondo no outro, aquele que o camelô garantiu ser à prova d’água. Mais fácil ganhar uma porrada por tão pouco ter para a limpa. Também, vem fazer o que um ladrão a essa hora nesse lugar? Melhor faz ele se estiver dormindo. Dormindo. Um desejo distante nesse momento.

Nem tão deserto talvez. Sob a marquise embolorada uma banquinha vende balas, dropes, mentol, chicletes, amendoins, raspadinha, federal, cigarros, fumo, papel. Protegida por São Jorge, em louça, escanteado entre BubbaloosAdams e Hollywoods. O ambulante, tão calado quanto eu, não parece querer conversa. Ouve rádio. Jogo qualquer. Deixa a noite avançar. Que ganha hora dessas? Aguarda, quem sabe, um transeunte, uma puta, um bêbado, uma figura qualquer, um eu. Deve nem ter família, nem pra onde ir, pinto pra dar de comer. Melhor ficar aqui então, quem sabe? No frio, no lodo, ocupando o abandono desse ponto. Fazendo existir esse lugar nenhum.

– Quanto é o amendoim?

– Um é três, dois é cinco!

– Aceita vale?

Pego dois, a jornada é longa. Tem agora menos o que levar o ladrão. O amendoim tá frio, úmido, beira o gelado. Deixa cheiro nas mãos. Esfrego no jeans. Tem a casca pra me desfazer. Apesar da sujeira, me recuso a jogar no chão. Transformo o lambisco num evento de malabares. Levo a amêndoa à boca, devolvo a casca ao saco pelo rasgo estreito, não deixo cair. E tem também aquele mais chocho, de casca escura, que a gente sabe que vai estar estragado por dentro, mas mete a boca assim mesmo, abre com os dentes e pronto: amargo, podre, azedo. Faz parte. Mais sorte no próximo. Passe o tempo, passa tempo.

No outro canto, recostado no concreto, repousa um tabuleiro, encardido, coberto por plástico estampado em florais, acorrentado e encadeado à coluna. Acerca, as manchas, do chão queimado de fogo, do grude de dendê. Protegido ali o ganha-pão da baiana. Ganha-pão? Vende acarajé, ganha pão. A Língua de Veloso. Sorrio.

Uma barata.

Faz frio. Aponta distante um par de faróis. Reflete a luz no asfalto. Reflete nas gotas que caem dispersas à sua frente. Será? O luminoso embaçado dificulta identificar qual é. Chega mais perto. É não. Para. Tá vazio. Desce o motorista, cochila o cobrador. O motor estribilha alto e irritante. Pergunta do jogo. O baleiro reclama da marcação. Folga a tampa do Termolar, serve mecânico um café quase quente. Vira o copinho o motorista. Não paga. Nunca paga. Penso que há um acordo bíblico entre as partes. O motorista nunca paga. Ascende ao posto, empurra a alavanca trepidante. Sabe-se lá como aquele treco engata. Por vício decerto. Primeira. Dá um solavanco. Vai embora. Some na esquina. Tristeza.

Cogito andar até o outro ponto. Quem sabe lá tenha mais ventura. Mas um mar de tubarões me separa deste outro cais. Sei não. E se o ladrão? Melhor aqui ficar. Tem o baleiro, companheiro mudo. Já esperei tanto. Quantas oportunidades perdidas por riscos que não se quer correr? E se? E se não? O futuro é uma eterna inconstante. Alterado em contínuo no agora. Este agora que acabou de se passar. Que passado já é.

Chuvisca. Meu ônibus? Nada. Chegam dois travestis. Cigarro a retalho, isqueiro na corda, café. Sopram fumaças pro alto. Mão na cintura, braço cruzado, o primeiro me atravessa o olhar. Disfarço, quero casa, quero cama. Discutem o casamento da Carla Perez, da colega que apanhou do cliente, e que teve roubado o dinheiro do programa. “Fazer o quê filha? Se foi a vida que Deus deu? Vamo batalhar!”. Cruzam a rua. Invadem o breu. Coragem.

Que horas serão? Busco no bolso o Digi Paper. E o ladrão? Melhor não arriscar. Deixa pra lá que o ônibus uma hora dessas passa. O ponto não tem sequer um banco para se sentar. Essa cobertura tá que tá pra cair. Hoje é que não! Porcaria de prefeito! Meus impostos, cadê? Nas colunas, entre rasgos e rugas, dialogam shows de pagode, mandingas de amor, cultos de louvor, cachorros perdidos, poesias urbanas, apto 2/4, ACM sorrindo. Anos de goma.

Outra barata.

Relaxo. Que se dane o ladrão. Já tracei todas as rotas de fuga. E o baleiro, não me ajuda? Terá parte com o gatuno? Tem não. Tá aqui só passando a vida. E eu? Don Juan do subúrbio, que faço? Parece a minha tão frágil nesse fim de mundo. Ninguém me sabe. Se algo ocorrer, nem desse ponto se tem ciência. Esse ponto, lugar que existe apenas no agora. Não fosse o baleiro, teria se dissolvido no escuro. Nem as putas, nem o motorista, nem os cartazes o livrariam do naufrágio certo. Seguimos então, eu passageiro, ele mestre, noite adentro, em calada companhia.

Meu ônibus.

Amanhã trabalho.

*Carlos Nascimento é diretor de Assuntos de Raça e Etnia do Sindicato dos Bancários de Vitória de Conquista e Região, mestre em Ciências da Comunicação e bancário da CEF/Candeias.

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