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Artigo: violências de bolso, por Carlos Nascimento

 Por Carlos Nascimento*

Sabe, dia desses tomei ciência de que o laboratório de análises clínicas do qual sou cliente, que há algum tempo já não oferece mais o sachê de biscoitos como desjejum pós coleta de sangue, também não fornece mais gratuitamente coletores de amostras, aqueles copinhos plásticos que levamos para casa para colher urina ou fezes. Compete agora a quem tiver indicação de tais tipos de exame, comprar tal recipiente em farmácias.

Mesmo entendendo que, do ponto de vista do objeto do negócio, a distribuição de biscoitos e coletores não seja considerada atividade essencial de um laboratório, e que em Tempos de Crise a contensão de gastos esteja sempre na pauta do dia, me questiono qual seria o imenso impacto da “oferta” destes produtos aos clientes, uma vez que invariavelmente seu custo é diluído no valor cobrado pelos serviços prestados a este mesmo público, ou mesmo que não fosse.

Considerando ainda tratar-se de uma empresa que, mesmo em Tempos de Crise, vem abrindo filiais em diversos bairros e em cidades da região, seria coerente inferir que tal expansão é fruto da economia obtida através da ação bem-sucedida de supressão destes itens à sua clientela (?).

Sabe, a loja de biscoitos na qual comprava iguarias e fazia lanches deixou recentemente de oferecer gratuitamente a seus fregueses o “cafezinho da casa”, aquele feito no bule, adoçado e mantido na garrafa térmica de sua lanchonete como opção ao café espresso. Deve agora quem desejar tomar o cafezinho coado, pagar por ele.

Diferentemente da situação do laboratório, ainda mais em Tempos de Crise, fico a pensar qual seria o imenso impacto da “oferta” destas “xicrinhas” de café aos clientes, uma vez que seu custo se encontra embutido no valor dos produtos e serviços dispostos, em uma loja de artigos caros, clientela fiel, e instalada em zona nobre da cidade, ou mesmo que não fosse.

Não me recordo de já ter visto pessoas fazendo fila naquele lugar para tomar o cafezinho de graça. Mas é claro, o objeto daquele negócio é vender, e não dar, alimentos.

Sabe, aqui por onde moro, uma das redes de farmácias que mais tem lojas na cidade reduziu o quadro de empregados, sendo que os que permanecem trabalhando exercem agora as funções simultâneas de balconista e caixa, o que os expõe a riscos, além de provocar filas e desconforto aos clientes. Curiosamente no interior dos pontos de venda, avisos sinceros justificam o quadro reduzido de atendentes em função das restrições impostas pela pandemia de Covid-19. Estranho que mesmo com tais restrições, e em Tempos de Crise, haja tantas filiais novas inauguradas nos últimos meses.

Aliás, fugindo um pouco ao tema deste texto, está aí uma dúvida que transcende minha compreensão de realidade: que população doente é esta que demanda a existência de tantas farmácias juntas numa mesma quadra, num mesmo bairro, numa mesma cidade? Muitas destas pertencentes à mesma rede e concorrendo entre si. Que variação de preços tão grande pode ter uma Aspirina que justifique que uma pessoa tenha tantas opções de lugares para comprá-la? E ainda, com que frequência estas pessoas consomem medicamentos a ponto de não poderem se deslocar uma quadra ou outra para encontrar uma drogaria? Tratar-se-iam tais compras sempre de emergências? Seria este um país doente? Ou ainda que fosse.

Sabe, ainda outro dia corria feito um louco com minhas filhas pelos corredores do aeroporto de Guarulhos à procura do portão de embarque de nosso voo. Quando feliz achei que o havia encontrado, com seguros 20 minutos de antecedência para o horário de saída, um “colaborador” da companhia aérea gritava que aquela era a última chamada para o embarque, ao ponto que “tangia” as pessoas finger adentro. Já na cabine, passageiros amontoados se debatiam para tentar conter nos bins suas agora compactas malas, exercício necessário para não pagar imorais tarifas de bagagem. Tempos de Crise.

Curioso então foi observar que, após “incomodados” em nossas “poltronas”, ouvimos pelo áudio o comissário de bordo informar, em tom orgulhoso, que decolaríamos com “15 minutos de antecedência” e que isso atestava a “eficiência e o compromisso” da empresa com seus clientes.

Em todos os “cases” citados fica claro o foco na eficiência. Na forma mais objetiva de se ganhar dinheiro eliminando gorduras na atividade empresarial, seja ela de pequeno no porte, como é o caso da biscoiteira, ou de grande porte como é o da companhia aérea. Maneiras pontuais e inteligentes de gerar mais resultado, agregar valor à marca, melhorar a lucratividade ou seu posicionamento no mercado. Contudo, me vem a suspeita de que algo (ou alguém) possa estar fora de questão nestas situações: o cliente talvez. Este senhor, razão de todas as empreitas, motivo único da existência de todos os negócios, aquele que “sempre tem razão”, a pessoa para qual se “costumizam” os produtos e serviços.

Em minha pífia percepção mercadológica, um cafezinho grátis não significa para seus fregueses apenas um benefício. Traduz uma atitude de carinho, uma consideração necessária àqueles que ali sempre compram e comem, pela qualidade, localização e pelo bom atendimento, não pela economia possível em uma xícara da bebida.

Um coletor de amostras decerto custa centavos para o laboratório, mas vale o respeito de seus clientes, ora lançados à quase imperceptível condição meritocrática de quem pode (ou não) comprá-lo na farmácia. Esta mesma que o impõe filas em razão da maior produtividade de seu restrito “time” de atendentes.

Já a atitude eficiente da empresa aérea certamente valoriza sua marca e deixa felizes seus acionistas, estes mesmos que também são tratados como gado quando necessitam voar na própria. Mais ganhos financeiros, menos humanos.

Sobre estes Tempos, Boaventura de Sousa Santos[1] escreve que:

“[…] a crise financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas políticas         sociais (saúde, educação, previdência social) ou a degradação dos salários. E assim obsta a que se pergunte pelas verdadeiras causas da crise. O objectivo da  crise permanente é não ser resolvida. Mas qual é o objectivo deste objectivo? Basicamente, são dois: legitimar a escandalosa concentração de riqueza e boicotar medidas eficazes para impedir a iminente catástrofe ecológica. Assim temos vivido nos últimos quarenta anos […]”.

Todas estas pequenas violências, quando em separado parecem não impactar tanto no dia a dia das pessoas, contudo, quando somadas a tantas outras que poderiam estar elencadas neste texto, contribuem para um estado coletivo de depressão. Valores não mensuráveis nos índices inflacionários. Algo que não está dito, uma sensação crescente de impotência frente à normalização de estratégias hipercapitalistas que valorizam o ser humano competente, hábil a compreender e corrigir constantemente sua conduta para o atendimento a tais demandas.

Sobre este tema, cabe lembrar José Mujica[2] ao afirmar que “[…] Somos tempo de vida transformado em mercadoria […]”, e portanto nada se paga com dinheiro, tudo se paga com Tempo de Vida.

Neste Setembro Amarelo, onde se discute a prevenção ao suicídio, incumbe pôr à mesa pontos como estes. Para além do desemprego, da falta de dinheiro, das relações humanas resfriadas, das doenças e do desgoverno, importa atentar para estas pequenas e diárias violações. Importa lembrar que pessoas importam, e que a exploração direta destas como meras clientes que “gastam” dinheiro corrobora com o endividamento compulsório da população, unicamente para o saciar de usuras.

Afinal, quanto Tempo de Vida à mais se deve ter para pagar por tais exigências?

Para refletir.

* Carlos Nascimento é mestre em Ciências da Comunicação, bancário da CEF/Candeias e delegado sindical, Carlos Nascimento.

[1]DE SOUSA SANTOS, Boaventura. A cruel pedagogia do vírus. Boitempo Editorial, 2020;

[2] MUJICA CORDANO, José A. “Somos tempo de vida transformado em mercadoria”. YouTube, 12/06/2019.

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