No início do século XX, Thorstein Veblen começou sua trajetória acadêmica crítica ao mainstream econômico da época – a teoria neoclássica.Veblen construiu um arcabouço teórico que destacava o papel das instituições como forma de explicar o comportamento dos indivíduos em sociedade, assim como as diferenças de desenvolvimento dos países.
Em “Teoria da Classe Ociosa”, Veblen apresenta um método de análise da evolução das estruturas socioeconômicas assentada na mudança dos hábitos de pensamento e de comportamento dos indivíduos. Conforme esse autor, o arranjo institucional que permeia as interações sociais vai além do mero regramento formal expresso em leis e normas, mas se sustenta nos hábitos compartilhados socialmente.
Os hábitos seriam comportamentos repetidos de maneira rotineira e derivados da relação do indivíduo com o meio que o cerca, a partir das relações de trabalho e tecnologias utilizadas no dia a dia. De tal forma que à medida que o meio se altera, novos hábitos tendem a surgir e substituírem os antigos. Em contrapartida, um novo arranjo institucional também pode propiciar a transformação das bases materiais que sustentam a sociedade, como leis ligadas a uma política industrial, por exemplo.
Além disso, Veblen também destaca que alguns hábitos de pensamento são resultados não só da mudança ambiental, mas de “mitos autorizados”, os quais se assemelham à propaganda, transmitidos das classes superiores aos estratos mais baixos e aceitos pelos últimos por apresentarem um invólucro de fato indiscutível.
Por conseguinte, a alteração do arranjo institucional passa pela incorporação de novos hábitos compartilhados socialmente, seja pela interação com o novo ambiente material ou pela aceitação de novos mitos autorizados. Isso significa que não basta criar uma nova lei para que essa assuma um caráter institucional e de fato molde o comportamento social, ela só se sustenta se estiver baseada nos hábitos já existentes de uma sociedade ou se forem capazes de alterá-los.
A PEC 55 e seus efeitos
Recentemente, o Brasil sofreu uma mudança constitucional profunda que supostamente solucionaria a crise econômica pela qual passamos, a PEC 55. Essa emenda congelará os gastos do executivo federal por um período de até 20 anos. Conforme estimativa feita por um conjunto de economistas no documento “Austeridade e Retrocesso”, ao final do período de vigência da PEC 55, os gastos públicos do executivo federal, que hoje representam 20% do PIB, se reduzirão para 12% desse agregado macroeconômico.
Vamos supor que o PIB nacional cresça nos próximos 20 anos a uma taxa média de 2,5% ao ano, que a reforma da previdência – nos termos como está sendo proposta – seja aprovada (considerando-se o processo de envelhecimento da população brasileira) e que o governo cumpra a sua promessa de manter intactos os gastos atuais com saúde e educação.
Nesse caso, os gastos do governo federal ligados a benefícios previdenciários, saúde e educação, representarão aproximadamente 11% do PIB. Assim, restará apenas 1 ponto percentual para financiar todo o resto do serviço público – inclusive Exército, Empresas Estatais, gastos com infraestrutura, funcionalismo público, salários dos nossos estimados políticos, instituições públicas (como o Banco Central), impressão de moeda etc.
Consequentemente, todos os serviços públicos supracitados não caberão nesse exíguo orçamento. Assim restará se reduzir os gastos com saúde e educação e privatizar outros serviços a fim de se manter o equilíbrio das finanças públicas. Consequentemente quem sairá perdendo, tendo uma redução em sua qualidade de vida, é a classe trabalhadora. A PEC 55, assim, é o caso de uma mudança institucional que alterará a condição material da sociedade.
Thorstein Veblen no país da PEC 55
O ponto que se pretende destacar é que o perigo de tal medida é ainda maior do que estamos pressupondo. Ao perdurar por tanto tempo, o “Novo Regime Fiscal” poderá ter como efeito a alteração dos hábitos de pensamento e o comportamento dos brasileiros.
Primeiramente, ao se reduzir a oferta e a qualidade dos serviços públicos nacionais, a visão das pessoas sobre o papel e as funções do Estado (e a eficiência de suas ações) mudará. Ao passo que os cidadãos se habituem a pagar por aqueles serviços que hoje são ofertados publicamente e tomarem a concepção das finanças públicas serem similares às finanças familiares como uma verdade inconteste – logo devem ser sempre superavitárias, políticas fiscais expansionistas e medidas de caráter distributivo acabarão por não encontrar respaldo social.
Isso combinado ao mito autorizado presente em nossa sociedade de que o Estado é per se corrupto e ineficiente, fará com que os indivíduos desenvolvam o hábito de pensamento de que não cabe a esse ofertar serviços básicos como saúde e educação gratuitos. Reforçando a ideia de que o caminho para o desenvolvimento é a privatização e, quiçá, o Estado mínimo. A PEC 55 propicia o desmonte da Constituição Federal de 1988.
Por essa razão, a situação enfrentada pelo País é ainda mais grave do que se supõe, pois se a PEC 55 alterar os hábitos dos brasileiros, revertê-la no futuro será muito mais difícil: estará institucionalizada a concepção de Estado mínimo como estratégia de desenvolvimento, uma contradição em si. Sabemos quem serão os perdedores…
Referências:
Austeridade e Retrocesso: finanças públicas e política fiscal no Brasil. São Paulo: Fórum 21; Fundação Friedrich Erbert Stiftung (FES); GT de Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP); e Plataforma Política Social, setembro de 2016. Disponível em: http://brasildebate.com.br/wp-content/uploads/Austeridade-e-Retrocesso.pdf
VEBLEN, T. A Teoria da Classe Ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Livraria Pioneira, 1965.
Fonte: Caros Amigos