Confira o artigo do antropólogo, escritor e babalorixá, Pai Rodney de Oxóssi, sobre a resistência do povo negro e o mito da democracia racial. O texto foi publicado originalmente pela Carta Capital.
Afinal, por que precisamos do Dia da Consciência Negra? E consciência negra é só pra negros? Qual a dificuldade em entender o sentido da data? Perguntas oportunas, necessárias, especialmente quando se percebe que alguns setores sempre ameaçam se rebelar contra o feriado e ainda há cidades que o revogam sem o menor constrangimento.
Gostaria muito que me dissessem por que Zumbi, que assim como Tiradentes é um herói nacional, não merece um feriado. E gostaria mais ainda de ver um presidente da República fazer História e decretar o Dia da Consciência Negra feriado no Brasil inteiro. Seria uma medida emblemática que daria não só a dimensão do legado de Palmares, mas colocaria no patamar adequado a história de luta e resistência do povo negro deste País. Nas palavras cantadas por Luís Carlos da Vila: “é preciso a atitude de assumir a negritude pra ser muito mais Brasil!” Mas se fosse simples já estaria feito.
Além dos quilombos remanescentes, há territórios negros que continuam evocando a herança de Palmares. São espaços de preservação e disseminação cultural, como os terreiros de Candomblé, afoxés, maracatus e escolas de samba. Nesses territórios, a memória coletiva segue viva e é essencial para a construção das identidades negras, que, na maioria das vezes, permanecem na triste condição da invisibilidade ou, mais grave, são combatidas pela sociedade e pelo poder público.
Assumir uma data para celebrar a negritude vai de encontro ao ideário de embranquecimento, que busca expurgar o sangue negro e limpar a raça brasileira. É a mesma ideologia que cria e sustenta a ilusão de que não existe racismo no Brasil e que serve como base para muitos argumentos que questionam a necessidade e a importância do Dia da Consciência Negra. No fundo, a estratégia de fragmentar sua identidade e dificultar que o povo negro atue enquanto grupo tem sido a consequência mais perversa do mito da democracia racial.
Quando dizem, por exemplo, que “alma não tem cor”, “precisamos de consciência humana, não de consciência negra”, “a questão é social”, percebe-se claramente que não conhecem a dimensão do problema. Mais da metade da população brasileira convive com a exclusão e a vulnerabilidade. Não se trata apenas de denunciar uma situação social gravíssima, mas de reconhecer que é a exclusão e não a presença do negro o fator determinante no entrave e no baixo desenvolvimento do país, ao contrário do que se propagou desde o fim da escravidão.
Nos últimos tempos, denunciar o racismo, o machismo, a intolerância religiosa ou a homofobia virou “vitimismo”. Esse neologismo infame, além de mostrar a superficialidade dos discursos, dilui o sentido da exclusão e da desigualdade que, de fato, determinam os lugares sociais de negros e de outras minorias, comprovando que existe uma elite que pretende manter as coisas como estão, aliás, como sempre foram.
Quando negros e negras denunciam situações de racismo, muitas vezes são “confortados” com certas frases feitas, do tipo: “mas você é um moreno lindo”; “mas você tem que ser superior a isso”, “a cor da pele não quer dizer nada”, ou ainda “isso é coisa da sua cabeça”, “você tem complexo de inferioridade”. Não se pode esquecer que quem sofre o racismo é o corpo negro, porque é impossível despir-se da própria pele. Portanto, é o corpo negro que toma tiro, é o corpo negro que não se vê representado, é o corpo negro que não tem oportunidade, é o corpo negro que vira estatística.
Disfarçar o racismo com esse negócio de “consciência humana” é o mesmo que revigorar o mito da democracia racial e condenar o povo negro a outros séculos de exclusão e desigualdade. A consciência tem que ser negra, e antes que qualquer um venha falar do que é justo ou injusto, vistam minha pele. Se alma tem cor, apesar de sacerdote, eu realmente não sei, até porque não é a alma que toma tiro da polícia, não é a alma que não recebe oportunidade de emprego, não é a alma que leva pedrada e apanha quando ousa carregar as insígnias dos orixás, não é a alma que só se vê como subalterno nas novelas da tevê.
O corpo tem cor, os símbolos da religião negra têm cor. O corpo e a cultura do negro são discriminados, olhados com toda carga de preconceito. Antes de falarmos em consciência humana ou dizermos que alma não tem cor, temos que ter a boa vontade de compreender e de vencer racismo velado, que sempre faz questão de dizer que a luta do povo negro não tem sentido.
Há negros de todas as cores. Existem, porém, muitos negros que não sabem que são negros. Mais do que necessária, a consciência negra é uma condição para impedir que nossa sociedade racista aponte do pior jeito a cor da nossa pele, nossos traços ou nossa origem (por exemplo, jogando bananas para jogadores de futebol que nem se autodeclaravam negros). Além disso, uma vez forjados de orgulho e resistência, podemos reagir ao racismo sem permitir que determinem nosso lugar no mundo.
Neste país, todo negro é um sobrevivente. Sobrevivemos a toda sorte de adversidade, ao descaso, à violência, à miséria, às doenças, às piores condições de trabalho, aos piores salários, à falta de assistência, à discriminação. Sobrevivemos à escravidão, ao massacre da nossa cultura, à perseguição da nossa religião, a humilhações históricas e cotidianas.
Precisamos do Dia da Consciência Negra para que todos os brasileiros possam pensar no país que querem construir. Precisamos deste dia para simplesmente celebrar o orgulho do povo negro: o orgulho de ter sobrevivido!
As opiniões expressas no artigo não refletem, necessariamente, o posicionamento da diretoria do SEEB/VCR.