Afirmar que o carnaval é a festa popular mais celebrada pelos brasileiros não é novidade para ninguém, nem que, ao longo do tempo, tornou-se elemento da cultura nacional. Mas, o carnaval de 2018 escreveu um novo capítulo nesta rica história. Agora, carnaval também é palco de manifestações políticas.
O que se iniciou nas ruas, antes mesmo do feriado, quando com inúmeros bloquinhos entoavam o grito: “Fora Temer!” pelo Brasil afora, conquistou um vulto internacional com manifestações nos sambódromos do Rio e de São Paulo.
Pecado é não pular o Carnaval”, provocou a Estação Primeira de Mangueira, numa referência ao prefeito do Rio de Janeiro e pastor evangélico, Marcelo Crivella. “Desobedecer para pacificar”, cantou a Mocidade Independente de Padre Miguel. “Liberte o cativeiro social”, pediu o coro do Paraíso do Tuiuti. “Salve a imigração”, saudou a Portela.
Em São Paulo, a Império da Casa Verde usou a Revolução Francesa para falar do caos na política brasileira, com guilhotina e tudo. Será que o brasileiro decidiu levar a revolta para o Sambódromo?
“O Carnaval de certa forma revela o fundo da sociedade brasileira”, analisa o antropólogo Roberto DaMatta, autor do livro “Carnavais, Malandros e Heróis”, em entrevista à Carta Capital. “Ele inverte, traz o fundo do poço para cima, como virar uma bolsa de cabeça para baixo ou uma roupa do avesso. Numa sociedade brasileira, onde tudo é proibido, uma sociedade que teve também reis, imperadores, que teve uma aristocracia pesadíssima com escravidão negra, uma sociedade que é patronal, familística, e que, como em quase todas as sociedades tradicionais (como no caso romano ou na França pré-revolução Francesa), estavam inscritos na dinâmica destas sociedades determinados momentos orgiásticos, onde se podia fazer tudo”, diz DaMatta. “Evidentemente está acontecendo uma mudança, é popular. E popular no Brasil não tem a ver com cidadania, como no caso francês – foi o povo quem fez a Revolução Francesa”, afirma.
Paraíso do Tuití
O desfile da Paraíso do Tuiuti merece destaque. A agremiação, nascida no morro de mesmo nome, em São Cristovão, no Rio de Janeiro, que surpreendeu o público durante o desfile de domingo à noite e conseguiu enorme repercussão nas redes sociais. Com o samba enredo “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”, a escola criticou as condições de trabalho no país e, de quebra, o atual Governo, responsável pela reforma trabalhista aprovada no ano passado.
Se a comissão de frente da escola trouxe O grito da liberdade, mostrando escravos saídos da senzala açoitados, o último carro veio com um vampiro vestido com a faixa presidencial, que lembrava Michel Temer. Ele estava em cima do carro chamado neo tumbeiro, ou seja, um navio negreiro dos tempos atuais. Na avenida foram ouvidos gritos de “Fora, Temer”, relatou o jornal O Globo. Entre o último e o primeiro carro, o desfile de 29 alas e 3.100 componentes ainda trouxe os manifestoches, integrantes vestidos de verde e amarelo, cor que marcou os protestos a favor do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, sendo manipulados por uma mão invisível e encaixados em patos amarelos, símbolo das reclamações contra o antigo Governo feitas pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Eles carregavam nas mãos panelas, outro símbolo dos protestos.
“Como falávamos da exploração do homem pelo homem queríamos incluir a mitigação dos direitos sociais. Através dos patinhos você representa uma situação anterior na qual os direitos eram bem protegidos e a partir do momento em que uma nova ordem política toma o país você tem novas reformas que, na ótica da escola, tiram direitos sociais de uma parcela da população. A escola quis questionar se quem pediu essa mudança não é também vítima. Essa pessoa que foi para a rua não tem esses direitos cortados também?”, explicou Thiago Monteiro, diretor de Carnaval da escola, em entrevista ao EL PAÍS.
Outro responsável pelo desfile foi além. O Carnavalesco Jack Vasconcelos fez uma defesa enfática da educação pública, em entrevista ao jornal O Dia; “Sou formado pelo ensino público, fui uma criança de escola pública, me formei em uma federal, em Belas Artes. Então, a população ajudou a me formar, foi dinheiro público que ajudou a pagar meus estudos e a manter as instituições em que me formei. Preciso de alguma forma retribuir para a população esse investimento. É a maneira que eu posso prestar o serviço a ela (à sociedade), através da minha arte”, disse ele.
Cobertura da mídia golpista
As críticas explícitas da Paraíso do Tuiuti deixaram em silêncio os comentaristas da TV Globo, que transmite ao vivo os desfiles de Carnaval. Enquanto as alas anteriores eram explicadas em detalhes, a dos manifestoches recebeu um rápido e único comentário de “manipulados, fantoches”, logo cortado para um “Jú, 120 [centímetros] de quadril”, em referência à passista mostrada em seguida na imagem. Nas redes sociais, a escola foi louvada pela “coragem” das críticas.
Para o jornalista Florestan Fernandes Júnior, nada é mais revelador da escravidão do jornalismo brasileiro que o silêncio ensurdecedor no momento em que a última ala da Paraíso do Tuiuti entrou na Marquês de Sapucaí. “Ninguém no estúdio da Globo se atreveu a narrar o que via. Uma cena patética e constrangedora. Durante longos minutos as imagens mostravam uma plateia vibrando com o carro alegórico que trazia em destaque um Temer Vampirizado. Só faltou a Tuiuti mostrar os repórteres escravos dos senhores da comunicação que não têm liberdade sequer para dizer o que todos viram em cores e ao vivo.”
Em compensação, jornal norte-americano New York Times publicou sobre o Carnaval do Rio de Janeiro, dando um destaque especial pra escola Paraíso do Tuiuti; “A Paraíso do Tuiuti mostrou patos de plástico manipulados por marionetes, em uma referência a um pato de plástico gigante usado pelos brasileiros conservadores para se queixar dos altos impostos do país em manifestações que ganharam destaque há dois anos. O pedestal da escola também trouxe um vampiro vestindo a faixa presidencial com várias notas falsas de dólares”, disse o jornal.