Nesta semana, republicamos o artigo do defensor Público do Estado do Espírito Santo, Rochester Oliveira Araújo, sobre o assassinato de Marielle Franco e suas repercussões. O texto foi publicado originalmente no site Justificando.
Querem jogar Marielle na cova rasa. É impressionante como a empatia e o alcance de Marielle têm se mostrado cada vez mais forte. Sua vida e sua morte repercutem internacionalmente, e de forma ainda mais significativa do que os canais de comunicação e a grande mídia, são assuntos no cotidiano. No elevador. No trabalho. Na padaria. Entre conhecidos ou desconhecidos. E esse alcance pode provocar mudanças significativas no avançado caminhar dessa trilha escura que vamos avançando no país.
Contudo, essa repercussão e esse alcance de Marielle incomodam muita gente. E, por isso, tentam jogar Marielle na cova rasa. Querem que seu sepultamento seja feito calado, silenciado, vazio. Não respeitam sequer a nossa dor. No elevador escuto que “todos falam dela agora, antes ninguém sabia quem era”.
Em postagens das redes sociais, dizem que “devemos lamentar como qualquer outra morte, pois toda vida tem importância”.
Não, não falamos dela só agora. E não vamos chorar a sua morte como outra qualquer. Não se trata de dar valores diferentes à vida das pessoas. Na verdade, isso já é feito cotidianamente, desvalorizando-se a vida (e a morte) de pessoas iguais a Marielle.
Os corpos matáveis sofrem mesmo depois de terem a sua vida ceifada. Suas histórias são apagadas, suas identidades esquecidas, e sobretudo suas mortes são revestidas de uma falsa legitimidade. São vários os instrumentos que buscam legitimar essas mortes.
Há respaldo estruturante quando a morte é oficialmente cometida por uma polícia que atua como carrasco de um Estado com racismo institucionalizado, a partir de autos de resistência. Também é possível, de forma muito fácil, “traficalizar” alguém: e como inimigo número um e causa de todos os problemas de nosso senso comum imbecilizado, um corpo revestido de traficante é mais um corpo matável.
A mulher assassinada é culpabilizada pela própria violência que sofreu, imputando a ela e suas condutas a responsabilidade por agressões, estupros e mortes. Sempre, de alguma forma, aquele corpo negro será convertido em um corpo matável.
O que faz Marielle ter esse alcance é justamente a incapacidade que se tem de tornar sua história algo descartável. Dentro de um jogo de homens brancos, ela colocou o seu corpo de mulher negra ocupando um espaço. Tornou-se um corpo com voz.
O destino foi o mesmo de tantas outras Marielles, mas não conseguirão fazer dela mais uma cifra.
As tentativas de jogá-la na vala comum, rasa, onde tantos corpos negros e de mulheres são jogados, são muitas e diversas. Contudo, lamentar sua morte como a de cada pessoa que morre, pois toda vida tem seu valor, é uma das formas mais covardes de tentar calar e apagar a sua história. É querer tratar com igualdade na morte alguém que denunciava as desigualdades da vida. É apagar a trajetória de alguém que lutava com bravura e que, na morte, teve um alcance e empatia comovente.
A sua execução feriu e atingiu diversas pessoas que têm o choro engasgado dos tantos corpos matáveis que não foram velados, das mortes que não foram choradas, das vidas que foram ceifadas. Por isso o choro é alto, é com soluço e é solidário.
Por isso o seu choro é capaz de unir, no lugar de dar lugar ao medo que se tentou fazer, dando coragem a quem ficou. Respeitem a dor, respeitem a voz, respeitem o choro.
E é incrível como esse choro alto repercute e ecoa tanto que causa medo nos algozes de Marielle, o que nos faz respirar para gritar ainda mais alto. É luto e é luta.
As opiniões expressas no artigo não refletem, necessariamente, o posicionamento da diretoria do SEEB/VCR.