Carolina Maria de Jesus (1914-1977), mineira, negra, semianalfabeta, aos 33 anos mudou-se para a favela do Canindé, Zona Norte de São Paulo. Trabalhou como empregada doméstica, teve três filhos, manteve-se solteira, tornou-se catadora e em cadernos encontrados no lixo, relatava seu cotidiano em forma de contos, romances, poesias e até peças de teatro. Um diário iniciado em 1955 deu origem ao primeiro livro de Carolina de Jesus, publicado em 1960. “Quarto de despejo: diário de uma favelada” tornou-se um best-seller com mais de um milhão de cópias vendidas em todo o mundo, traduzido em 13 idiomas, em mais de quarenta países. Apenas no Brasil, o livro vendeu mais de 80 mil exemplares.
Apesar do sucesso, Carolina só obteve 10% das vendas de sua obra mais famosa, morrendo pobre e praticamente esquecida no Brasil. Em vida ainda publicou as obras, Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963) e Provérbios (1963). Após sua morte ainda foram publicados as obras: Diário de Bitita (1982), Meu Estranho Diário (1996), Antologia Pessoal (1996) e Onde Estaes Felicidade (2014).
Trecho do livro “Quarto de despejo”, diário de Carolina Maria de Jesus publicado pela autora.
Dia 13 de maio de 1958.
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.
Continua chovendo. Eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Mesmo assim mandei os meninos para a escola. Estou escrevendo até passar a chuva, para eu ir lá no senhor Manuel vender os ferros. Com o dinheiro dos ferros vou comprar arroz e linguiça. A chuva passou um pouco. Vou sair.
Eu tenho tanta dó dos meus filhos. Quando eles veem as coisas de comer eles bradam: Viva a mamãe. A manifestação me agrada. Mas eu já perdi o hábito de sorrir. Dez minutos depois eles querem mais comida. Eu mandei o João pedir um pouquinho de gordura pra Dona Ida. Ela não tinha. Mandei-lhe um bilhete assim: Dona Ida peço-te se pode me arranjar um pouco de gordura, para eu fazer uma sopa para os meninos. Hoje choveu e eu não pude ir catar papel. Agradeço. Carolina.
Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A minha filha Vera começou pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a dona Alice. Ela me deu a banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual, a fome!
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