Conversamos com a coordenadora de Projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, sobre o decreto que alterou o Estatuto do Desarmamento e as soluções para o crescimento da violência no país.
Após 16 anos de atividade, a senhora considera que o Estatuto do Desarmamento foi importante para a população? A revogação da Lei pode aumentar ainda mais a escalada da violência? A criação do Estatuto do Desarmamento foi de suma importância. Existem séries de evidências científicas e estudos feitos por todo o mundo que apontam que mais armas geram mais violência. Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), especificamente sobre o Brasil, demonstrou que 1% a mais de arma eleva em até 2% os casos de violência. A gente vê também no Brasil um debate ainda pouco qualificado, em que se observa a média obtida nacionalmente e se argumenta que o Estatuto é ineficiente. Na verdade, antes do Estatuto, os índices cresciam mais rapidamente. Outro ponto é que existem divergências estaduais: em alguns estados, a violência realmente cresceu, mas, em outros, como São Paulo – que conseguiu reduzir em mais de 70% -, Pernambuco, Espírito Santo, Minas Gerais, o controle de armas de fogo era um dos eixos principais de ação dos governos. Então, o Estatuto do Desarmamento teve sim um efeito positivo.
O Atlas da Violência 2018 afirma que o Brasil registrou a marca histórica de 62.517 mortes violentas intencionais em 2016. Seria correto atribuir este recorde ao Estatuto do Desarmamento? Não. Essa seria uma afirmação completamente sem sentido. Na verdade, qualquer análise de violência precisa ser multifatorial. Por exemplo, quando nós afirmamos que os Estados Unidos da América, apesar de ter um índice menor que o Brasil, ainda é um país muito violento é por que comparamos com locais que possuem nível de renda e desigualdade semelhantes. Não podemos comparar diretamente com o Brasil, da mesma forma que não se pode dizer que a violência seja causada somente por um fator.
Os dados utilizados pelo governo para defender a liberação de armas têm sido questionados por apresentar informações distorcidas, a exemplo de que existem menos mortes violentas nos países onde a venda de armas é liberada. Qual o impacto que essas informações podem causar na formação da opinião pública? É muito danoso, porque estão relacionando coisas que não são comparáveis. A distorção busca algum dado que ajude a referendar uma promessa de campanha, mas que não tem respaldo em relação ao que é comprovado e que funciona. Então vemos com muita preocupação essa busca desesperada por alguma estatística que consiga avalizar uma proposta que não tem fundamentação científica, de análise empírica. É a mesma questão em relação a justificar utilizando o referendo de 2005, que também é muito impreciso. Na época, as pessoas decidiram pela continuidade da venda de armas aos civis, mas utilizando as regras definidas pelo Estatuto do Desarmamento. Nos últimos 15 anos foram vendidas mais de 800 mil armas de fogo legalmente para civis. As pesquisas atuais mostram que 60% da população não quer a flexibilização da Lei.
A quem interessa a facilitação da venda de armas no Brasil? Essa é uma pergunta que nós nos fazemos com bastante frequência. A pesquisa de dezembro de 2018, posteriormente à eleição, apontou que a rejeição chega a 70% entre as mulheres e que não é consenso entre os próprios eleitores do presidente. O perfil populacional que defende o armamento é de majoritariamente masculino e de classe média alta. Contudo, essa minoria específica é bastante organizada e por isso consegue se fazer ouvir. Existe também a pressão por meio da indústria armamentista, que se configura como o único setor econômico que pode se beneficiar da facilitação da venda de armas de fogo.
Qual o efeito que o decreto assinado pelo presidente Bolsonaro pode ter nos índices de violência? O efeito é potencialmente muito negativo por alguns fatores. O primeiro é que as pessoas tentem se defender armadas. Nós percebemos pelos casos que é muito difícil uma pessoa reagir quando é pega de surpresa. Inclusive são nas situações de folga que os policiais mais morrem, pois, nos casos inesperados, o tempo de reação é insuficiente. Pensando em uma arma na mão de um cidadão que não tem treinamento constante, as chances dele conseguir fazer um disparo efetivo em uma situação de estresse é mínima. É muito mais provável que o crime seja agravado (o que seria um roubo acabe se tornando um latrocínio), que aconteça um tiroteio (colocando em risco a vida de quem está próximo) e que a arma seja levada (o que alimenta diretamente o crime). Lembrando que a posse autoriza o uso, a princípio, em dois lugares: nas residências e nos comércios. Nas casas, existe um potencial muito grande de uso em conflitos intrafamiliares, é o ambiente onde acontece a maioria das agressões contra mulheres – evoluindo inclusive para o feminicídio -, aumenta a possibilidade de acidentes com crianças, entre outros. Nos locais de trabalho, principalmente em local onde se concentram pessoas, como bares e restaurantes, o risco de morte por balas perdidas é muito alto. O decreto também ampliou o período do registro, que era renovado a cada cinco anos. Agora foi estendido para 10 anos e não faz o menor sentido acreditar que um laudo psicológico é válido por esse tempo. Outro fator foi a renovação automática, que manteve o direito para pessoas que estão em condições desconhecidas e que não vão comprovar novamente as questões práticas, psicológicas e nem mesmo a falta de antecedentes criminais.
Armar parte da população (aqueles que podem comprar uma arma) é uma forma do Estado terceirizar a responsabilidade pela segurança pública? Com certeza. É uma pequena parcela que deseja ter acesso e uma parcela menor ainda vai conseguir, pois o processo de obtenção do registro e da compra da arma é caro. Uma certeza que temos é que a maioria da população quer segurança pública. Então liberar armas é uma distorção para dizer que está trabalhando pelo combate à violência. Na verdade, o governo se furta da sua responsabilidade. Poderiam ter começado com investimentos na Polícia Federal, nas ferramentas de inteligência, na integração das polícias dos estados e Ministérios Públicos, entre uma série de medidas. Largar a população à própria sorte com uma arma na mão foi uma primeira decisão muito equivocada.
Quais as políticas que devem ser desenvolvidas para o combate da violência? É importante falar sobre isso porque vemos uma série de posicionamentos apontando para o armamento e para as prisões, quando, na verdade, temos vários caminhos que podem ser tomados. Um deles é o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que foi aprovado no ano passado e está sendo implementado. Outra coisa extremamente básica é a produção de estatísticas criminais e procedimentais uniformizadas e consolidadas no país, pois os dados são produzidos por instituições privadas. A integração efetiva entre as polícias dos estados, pois o crime organizado é claramente interestadual e não é possível combatê-lo sem união, inclusive dos MPs e da PF. Precisamos retomar o controle do sistema prisional, pois as prisões se tornaram escritórios do crime. Investimentos em investigação criminal, já que muitos crimes ficam sem punição não pela lei penal ser “frouxa”, mas por não se conseguir identificar ou julgar o autor. É preciso emprego de tecnologia, como câmeras, detecção de placas de veículos roubados ou clonados, reconhecimento facial, bancos de impressão digital, bancos de impressão balísticas das armas de fogo. Além dos investimentos em políticas públicas para as comunidades que possuem maior incidência de crimes. Então é uma série de medidas que devem ser adotadas como prevenção.