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Artigo: “Negrinho”, por Telma Monteiro

Confira o artigo da ativista sócio-ambiental, pesquisadora e educadora, Telma Monteiro, sobre os preconceitos que perduram na sociedade brasileira.

Aposto que você ficou chocado com o título dessa crônica. Eu também. Fiquei, quando à minha mesa um convidado se referiu a uma pessoa que o abordara numa praia do litoral do Brasil. Confesso que gelou-me o sangue ao ouvir uma expressão que desde a Lei Áurea é considerada pejorativa e, atualmente, racista, criminosa. Tentei contemporizar, afinal estávamos à mesa e meus convivas tinham sido convidados por mim.
Ora, se você convida alguém para partilhar do seu pão, significa que você por ele tem apreço. Assim, como suportar a minha pressão que acabara de subir e que fizera meus cabelos na nuca arrepiarem? Terminada a refeição, a qual tentei fazer mais célere, comecei a refletir sobre o que ouvira. Por que eu nunca tinha me deparado com algo parecido, até então? Talvez eu não tivesse dado atenção aos colóquios que me cercaram durante a infância, adolescência e vida adulta.
Já ouvira a expressão, dita daquela forma, que me tomara uma noite inteira de reflexões? A resposta é não. Eu jamais a ouvira entre amigos, ou familiares, ou no transporte público, ou na mesa ao lado no restaurante. Mas já lera em livros da literatura brasileira que retrataram com esmero o capítulo triste da nossa história. Lembrei de Navio Negreiro, Negrinho do Pastoreio, lenda do final do século 19, durante a campanha pelo fim da escravidão. Até Clarice Lispector abordou o tema.
Fui à web e encontrei inúmeras referências a negrinho, mas nenhuma usada de forma pejorativa para definir alguém da raça negra. Então, meus neurônios já carregados de afirmações que aqui não expressarei me levaram a perguntar o porquê, agora, em pleno século 21, alguém com pouco mais de quarenta anos se referiria a um jovem da raça negra como “negrinho”.
O que mudara no Brasil? Ou o que não mudara, na verdade. Sei que muitos já devem estar imaginando onde quero chegar. Sim, lá mesmo, no atual governo, no bolsonarismo retrógrado que está fazendo aflorar em brasileiros um destravamento no linguajar que estava oculto sob o manto do politicamente correto. O politicamente correto que, só então percebi, nada mais foi do que uma mordaça para a convivência pacífica em sociedade para evitar aquilo que presenciei à mesa.
Tenho encontrado pessoas com as quais convivi, pois pude delas me livrar, e outras com as quais ainda sou obrigada a conviver, que simplesmente destravaram suas línguas e mentes em franca marcha à ré. Agora se fortaleceram e expõe seu racismo explícito, sem aquele manto tênue que impedia tal liberalidade vil. Mas, não é só o sentimento criminoso do racismo que tem chocado esta sociedade ainda minimamente humana. Percebe-se um exacerbar de sentimentos obscenos, não no formato carnal religioso, mas no sentido de reduzir o outro a algo menor, inferior, sujo, pecaminoso – segundo seus preceitos.
Sentimentos que, confesso, já nem imaginava existir. Afinal, evoluímos. Ou não. Quem sabe essas pessoas, no aconchego do lar, no olhar do olhar, no pontar do dedo indicador sempre agiram e pensaram assim. Faltava-lhes coragem? Não, não creio. Faltava-lhes incentivo, apoio. Agora, você pode se expor, porque você é superior. Eles é que são seres inferiores e nasceram para serem apontados como tal. O bolsonarismo abriu a porta do pode tudo, desde que você seja ariano, hétero, coxinha.
Sim, você pode chamar o índio de vagabundo. Sim, você pode chamar a mulher de puta. Sim você pode chamar o homossexual de viado. Sim, você pode chamar o morador de rua de pedinte. Sim, você pode chamar o negro de negrinho. Sim, você pode chamar a negra de neguinha. Sim, você pode chamar o outro como quiser, desde que o diminua diante de você e da sua sórdida sociedade, e o coloque no rés do chão da decência.
Não esqueci, também, que nesse mesmo evento, tive que aguentar o sociopata nazista que ousou dizer que o cérebro do negro é inferior ao cérebro do branco, pois os negros foram criados para ter força e não inteligência. Se assim não fora, teriam dominado o mundo, não é? Completou. Seria esse o legado do Brasil de Bolsonaro que a história irá lembrar no futuro? Se é que teremos um futuro para lembrar um passado que não podemos esquecer.

As opiniões expressas não refletem, necessariamente, o posicionamento da diretoria do SEEB/VCR.

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