“Tudo que peço a nossos irmãos é que tirem os pés do nosso pescoço e nos deixem andar”. A frase da ativista pelos direitos das mulheres, Sarah Moore Grimké, que viveu no século XIX não perde a atualidade. Mais de 200 anos depois, a sentença descreve com precisão quase cirúrgica qual é o maior empecilho enfrentado na busca pela igualdade.
Ainda hoje, de acordo com dados levantados pela OXFAM, as mulheres estão à frente de mais de 75% do trabalho não remunerado do mundo. Antes de alcançarem a maioridade, elas dedicam horas consideráveis de suas vidas a um mercado que garante a sustentação do capitalismo: são responsáveis pela formação das crianças e jovens, pela atenção aos idosos, pela manutenção do ambiente doméstico e até mesmo pelos cuidados básicos de maridos e companheiros.
Hoje, 42% das mulheres em idade ativa estão fora do mercado formal. Entres os homens, este índice é de 6%. Ao mesmo tempo em que esse cenário se perpetua, cresce a presença das mulheres que protagonizam lutas sociais.
São elas que estão a frente mesmo dos movimentos que não estão diretamente ligados à pauta feminista. Nos sindicatos, nas organizações populares, nas grandes pautas globais e regionais e nos protestos políticos, a liderança feminina se destaca cada vez mais.
Colaboradora do Brasil de Fato e militante da Frente Brasil Popular, a ritmista Lorena Lemos fez recentemente uma análise sobre como as mulheres têm travado as principais batalhas da oposição. Ela usa o carnaval de rua de Belo Horizonte como um micro-universo que reflete um movimento global.
“Eu acho que a força que nós tanto sonhamos e construímos no cotidiano vem puxada pelas mulheres. Nós sabemos que, apesar de estarmos em maior número, o tempo todo a nossa capacidade, a nossa remuneração, as nossas conquistas são diminuídas, A partir do debate de que a gente quer construir uma outra sociedade, essa outra sociedade tem que estar ancorada a partir da luta das mulheres. Ela encontra na luta das mulheres um solo fértil. Isso traz para mim um sentimento de muita esperança, porque eu acho que a mudança vem das mulheres”, aponta Lemos.
O protagonismo coloca na linha de frente, e consequentemente correndo mais riscos, um grupo que historicamente já sofre violências físicas, morais e psicológicas. Frente ao risco, a militante da Frente Brasil Popular ressalta que é notável o crescimento da solidariedade e considera que falharam as tentativas de massificação do discurso que prega a competição entre as mulheres.
“O medo serve para nos deixar atentas, mas ele está aliado a um sentimento fundamental, que é o sentimento da coragem. A gente pode até temer, mas isso não vai impedir que a gente saia de casa, que a gente deixe as nossas palavras, que a gente faça um ato, que a gente vá para o Carnaval, que a gente ocupe esses lugares na política, nas empresas e nos movimentos sindicais. E aí, o mais importante é a gente saber que a gente vai ter as nossas companheiras do nosso lado”, defende Lemos.
Seguindo esse mesmo caminho de análise, nesta semana o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social iniciou a publicação da série de estudos Mulheres em Luta. Ao longo do ano serão contadas história de mulheres que construíram e seguem construindo os movimentos de resistência globalmente. Na primeira edição, o Instituto analisa a conjuntura de lutas das mulheres na Ásia e na África.
Um dos casos analisados no dossiê é a construção do Ele Não, movimento nascido em 2018, contrário à eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil. A organização das manifestações e o alcance dos protestos, que chegaram a acontecer internacionalmente, são fruto do trabalho de mulheres. A reivindicação não era específica da pauta feminista, mas hoje o Ele Não é considerado a maior mobilização feminina da história do Brasil.
Na Venezuela, mais de 60% das lideranças dos conselhos comunais são exercidas por mulheres. Na África do Sul elas protagonizaram a luta por acesso a medicamentos, que teve início na década de 1990. Mais recentemente, na Índia, as mulheres estão a frente da luta contra as mudanças na lei de cidadania, que discrimina a população muçulmana.
Renata Porto Bugni, que atua no Instituto, ressalta o caráter de reação desses movimento, frente ao fato de que são as mulheres as primeiras e principais vítimas da precarização, opressão e exploração do trabalho e da vida.
“O nosso dia a dia, historicamente, nos torna atentas a esses processos de exploração e opressão. Elas vivem isso desde a infância. A sobrecarga que as mulheres sofrem também dá às mulheres mais capacidade de enfrentar os momentos mais difíceis. A gente é sempre colocada à frente de resolver mais questões econômicas e sociais do que os homens. Elas têm conquistado esse protagonismo por uma história de muita opressão, de muita exploração e de uma conquista de direitos formais que as colocaram com uma capacidade de compreender que podiam ocupar mais do que elas ocupavam antes. Ainda assim, a mídia, as pesquisas e os estudos não dão luz para as mulheres de luta e em luta. A contribuição que a gente quer trazer é dar luz a essas mulheres, que ficam invisibilizadas e cria-se esse ideário popular de que as mulheres não têm capacidade ou propensão a esse tipo de tarefa”, ressalta Bugni.
No Brasil esse aumento expressivo das mulheres na militância vem sendo observado há algumas décadas. Da presença de militantes na luta contra a ditadura ao Ele Não, elas foram forças essenciais para a anistia, as diretas já, o movimento sindical, a saída às ruas dos cara pintada pelo impeachment de Fernando Collor de Melo, o movimento estudantil, as lutas pela terra e por moradia e tantas outras.
A fotógrafa Claudia Ferreira acompanha e registra esse movimento desde a década de 1980. Ela mantém online o banco de imagens Mulheres e Movimentos, que surgiu a partir de um livro com o mesmo nome.
O projeto é realizado pelo Centro de Atividades Culturais, Econômicas e Sociais, financiado pelo UNIFEM – Fundo das Nações Unidas para a Mulher e tem parceria com o Laboratório de História Oral e Imagem do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Mais do que o aumento da presença feminina nos movimento sociais, ela nota também a diversificação dessa presença.
“Eu dizia que eu fotografava o movimento feminista, mas hoje eu digo que eu fotografo movimentos sociais. As mulheres estão muito presentes tanto nos espaços políticos quanto nos espaços dos trabalhadores rurais, nos espaços LGBTs, nos espaços do movimento negro. Quando eu comecei a fotografar, o movimento feminista era basicamente composto por mulheres brancas e de classe média. Hoje a história é completamente diferente, ele é muito mais amplo”, afirma Ferreira.
Greve Geral. Rio de Janeiro, 2019 – Créditos: Claudia Ferreira
Os exemplos de lutas sociais que ilustram o protagonismo cada vez mais presente das mulheres são muitos. Mas no Brasil, talvez um dos mais expressivos seja o movimento pelo direito à terra. A Marcha das Margaridas, organizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, tem levado milhares de mulheres, que vivem nos espaços rurais, para Brasília há vinte anos, com cada vez mais potência de mobilização.
Na primeira edição, em 2000, foram 20 mil manifestantes. Em 2019, cerca de 100 mil mulheres participaram da marcha, a despeito do ambiente político conservador e opressor que tomou conta do país.
Vilenia Aguiar, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Agricultura Familiar da Universidade Federal de Santa Catarina e assessora da Secretaria de Mulheres da Contag, narra que as margaridas revelam um tipo específico de feminismo, que vem das demandas cotidianas, não liberais e que impactam em cada detalhe da vida dessas mulheres.
“São mulheres que lutam, que lidam com coisas que nós urbanas não alcançamos. São mulheres que às vezes não têm acesso à água, que têm moradias precárias. Nos campos, nas florestas e nas águas, muitas vezes a seguridade social são elas. Não tem Estado para essas mulheres. Elas que têm que cuidar da saúde com o que têm, porque não há acesso a um posto de saúde. A questão da saúde, da alimentação, da educação, quem garante tudo isso são as mulheres. Onde o Estado não está presente, a seguridade social são as mulheres. Elas se sentem realmente muito fortes. Quando elas falam, ‘eu estou aqui por direitos’ elas sabem exatamente o que estão dizendo”, aponta Aguiar.
A Marcha das Margaridas é um dos movimentos que Cláudia Ferreira vem fotografando nas últimas décadas, e é nas mulheres do campo que ela percebe como a potencialidade feminina pode chegar longe.
Nas palavras da fotógrafa, que há três décadas se coloca a serviço da memória dessas lutas, a presença feminina posiciona as mulheres na linha de frente e em um lugar de risco, mas a caminhada não vai parar e será responsável por uma mudança global.
“Eu sinto que, se existe um movimento que tem capacidade de transformar isso tudo que estamos vendo, essa desesperança, isso tudo, eu acho que são os movimentos feministas. Somos nós mulheres que estamos mais organizadas para enfrentar toda essa barbárie. É impossível segurar as mulheres”, conclui Ferreira.
Fonte: Brasil de Fato