Nós todas e todos fomos profundamente afetados pelos últimos dias pelo caso da menina de 10 anos estuprada pelo tio, que tomou as manchetes e as redes sociais. Saber de sua gravidez nos deixou estarrecidos, e seu desejo de interromper a gravidez se tornou uma batalha que expôs, com força há tempos não vista, a extensão e mobilização dos movimentos pró-vida e pró-família.
Estes grupos estão cada vez mais ganhando as ruas, de forma cada vez mais agressiva. Eles já acamparam em frente ao hospital Pérola Byinton, em São Paulo, por ser um hospital que comporta uma seção de aborto legal. Eles já hostilizaram a filósofa Judith Butler em sua visita ao Brasil em 2017, chegando a persegui-la até o Aeroporto com ameaças de agressão.
Por estas entre outras, grupos pró-vida e pró-família se encaixam muito mais na chamada “Lei Antiterrorismo” do que muitos grupos e movimentos sociais de esquerda acusados de usarem de violência e vandalismo.
No caso da menina do Espírito Santo, cercaram e ameaçaram invadir um hospital para impedir um procedimento legal, impediram ou dificultaram a entrada de outras pessoas que precisaram de atendimento, atacaram profissionais da equipe médica aos gritos de assassinos.
Grupos pró-família e pró-vida são grupos de ódio. Eles nasceram assim nos Estados Unidos, eles permanecem assim no Brasil.
Não por acaso, o seu surgimento, nas décadas de 40 e 50, e seu endurecimento nas décadas de 60 e 70, está diretamente ligado a uma reação conservadora e branca nos Estados Unidos. E suas raízes vão ainda mais longe, no período escravocrata.
Origens no fundamentalismo cristão
O fundamentalismo cristão descobre na família e suas pautas, como casamento, sexualidade e aborto, os “valores” úteis e apelativos o suficiente para reorganizar a sociedade à sua maneira. São grupos pró-família que relativizam o assassinato do adolescente Emmet Till, em 1955, no Mississippi.
Till foi assassinado por homens brancos, porque havia “mexido” com uma mulher branca. Proteger as mulheres brancas de homens e jovens negros era uma pauta de grupos cristãos “pró-familia” e “pró-vida”. Não por acaso eram a favor da segregação. No auge dos linchamentos de homens negros no Sul do país, várias ocorrências envolviam “assédio” a mulheres brancas.
Por outro lado, o aborto era sabidamente uma das muitas estratégias que as negras escravizadas nos Estados Unidos encontraram para interromperem a escravização de suas descendências, ou evitar parir o fruto do estupro do senhor das fazendas, ou os filhos dos patriarcas da família.
E esta decisão sobre o aborto, claro, é masculina e patriarcal. Não igualar “nossas princesas do Senhor” às “negras desalmadas”. É papel dos sacerdotes considerar o aborto um pecado, é papel dos nossos juízes condenar a sua prática.
Proteger as mulheres brancas de homens negros “violentos e estupradores, e demonizar a prática do aborto, que as mulheres negras (escravizadas) faziam, tornou-se padrão dos fundamentalistas brancos e sua defesa da família e da vida. E a melhor maneira de sustentar isso era recorrendo à narrativa de que “vida” e família” são valores que a Bíblia, portanto Deus, ordena.
Grupos pró-vida surgem como reação a movimentos por direitos civis
Nas décadas de 60 e 70, o movimento pelos Direitos Civis, que deixou a tradicional família branca acuada, seria acrescido pelo movimento de liberação sexual, a primeira parada gay após o episódio de Stonewall, a luta feminista por autonomia das mulheres e a primeira decisão da história da Suprema Corte, em 1973, pela liberação do aborto legal.
Não por acaso, as mais antigas organizações pró-vida e pró-família surgem neste período. Não é uma recuperação de ordem religiosa, não é apenas uma preservação da moralidade, é a manutenção de uma estrutura de violência e sujeição em que a Bíblia só vai aparecer como álibi, e não como princípio.
Como pastor, não me é confortável ver a Bíblia no centro de um movimento que odeia e ignora as dores alheias. Mas o fato é que ser cristão, sem humanidade, não blinda ninguém contra o uso seletivo dos textos sagrados para legitimar sujeição, dor e negação de existência a outros.
Não é possível exigir coerência com as mensagens de Jesus de grupos evangélicos fundamentalistas de movimentos pró-vida e pró-família. Não se pode imaginar que ser “pró-vida” é ignorar a dor que seria a vida desta menina de 10 anos, ignorar que se ela levasse a gravidez adiante seja uma “contradição”.
O melhor a fazer é encarar o fato de que um grupo de origem racista, machista, classista, violento e negador de direitos está cada vez mais fortalecido, mais agressivo, e eles vão usar da Bíblia ao Direito Constitucional para manter seu projeto de sociedade ideal.
*Ronilso Pacheco, Teólogo pela PUC-Rio, Pastor auxiliar, ativista e escritor, é pesquisador e mestrando no Union Theological Seminary, da Columbia University em Nova Iorque, autor de “Teologia Negra, o sopro antirracista do Espírito”, “Profetismo, Utopia e Insurgência” e “Ocupar, Resistir, Subverter: igreja e teologia em tempos de violência, racismo e opressão”. É Fellow da Ford Foundation Global Fellowship
Fonte: UOL