O biólogo e doutor em Genética e Biologia Molecular analisa a situação do gerenciamento e enfrentamento da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus
Por Carlos Bernard
Desde os primeiros registros relativos a ocorrência de uma nova síndrome respiratória em Wuhan na China, ainda no final de 2019, e de maneira mais intensa, a partir de março de 2020, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou estarmos vivenciando com a covid-19, doença causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, uma pandemia com grande potencial de disseminação, inúmeras mudanças sociais, econômicas e de contexto científico passou a operar e ser ao menos teoricamente entendidas como prioridade.
Fato é que, nestes aproximadamente sete meses de convívio com a covid-19, os brasileiros vivenciam enquanto sociedade, não apenas as consequências diretamente relacionadas à pandemia, mas infelizmente, também as consequências da: falta de articulação efetiva entre os diferentes níveis de gestão pública (federal, estadual e municipal); desnecessária politização de questões técnicas, relativas a projeções, medicamentos e vacinas; crescente uso das redes de comunicação para disseminação de notícias falsas, fake News; e ainda uma valorização exagerada das opiniões emitidas por não especialistas em detrimento das constatações e recomendações técnicas/científicas. Em conjunto, esse cenário faz prevalecer na prática, à teoria intrínseca ao conceito de pós-verdade, que, minimamente, decorre e provoca à fuga da realidade em favor da hipervalorização das opiniões particulares.
Sem a intenção de realizar neste artigo uma discussão relativa aos aspectos políticos da gestão de enfrentamento à covid-19, é imperativo o registro de que permanecemos órfãos de uma articulação organizada entre os poderes. A consequência desse fato foi, infelizmente, além da promoção de discussões, entendimentos e medidas regionalizadas de enfrentamento a pandemia, o fomento de uma polarização entre o governo federal e os estaduais. Além do próprio descompasso vivenciado entre a gestão técnica da pandemia, associada ao Ministério da Saúde e à gestão política capitaneada pela presidência da República.
Neste contexto, tenho mencionado em diferentes oportunidades, que embora se observe uma crescente manifestação pública de cientistas das mais diversas áreas em favor de determinadas medidas e recomendações, é notório que as manifestações e recomendações dos gestores tendem a uma maior adesão da população. Da mesma forma, recomendações e manifestações contraditórias das representações públicas, dificultam o estabelecimento de padrões sociais desejáveis nestes momentos de convívio e enfrentamento à covid-19.
Pala além das (des)informações, uma questão técnica e de gestão que dificulta nosso convívio com a pandemia é o baixo percentual de testagem, sobretudo com uso de testes de RT-PCR. No geral, as testagens no Brasil, encontram-se em torno de 70 mil testes por cada milhão de habitantes. A título de exemplo, essa proporção de testes representa entre três e quatro vezes menos testes do que o contabilizado para países como Estados Unidos (300 mil/milhão), Reino Unido (314 mil/milhão), Rússia (295 mil/milhão), Espanha (230 mil/milhão), Portugal (230 mil/milhão) e França (210 mil/milhão). Além disso, inúmeras estimativas sugerem que convivemos com um registro oficial de casos muito inferior ao real. Consequentemente, a realidade de uma elevada taxa de subnotificação torna-se mais uma dificuldade para o estabelecimento de estratégias de controle (rastreio), e até mesmo para estimativas mais fidedignas quanto à projeção da pandemia.
Diante dos quantitativos da covid-19 no Brasil, mais de 4.5 milhões de casos e de 137 mil obtidos até a escrita deste artigo, e, sobretudo pelo comportamento epidemiológico que vivemos, é hoje difícil manter o “otimismo” apresentado nas declarações do então Ministro da Saúde quando registrado o primeiro caso de covid-19 no Brasil. De acordo com ele, “o Brasil está preparado para testar os casos e para garantir que casos confirmados sejam monitorados e tratados” e também que “vamos sair mais forte do que entramos e com mais capacidade de reagir a essas situações”.
Respeitadas as devidas proporções e as naturais particularidades intrínsecas as regiões que compõem um país de dimensões continentais como o Brasil, a região Sudoeste da Bahia possui muitas das características e realidades postas de forma geral até aqui para o convívio e combate à covid-19. Apenas para ilustrar algumas situações minimamente contraditórias, existentes entre as decisões da gestão pública e das atitudes sociais de muitos, apresento aqui dois dos gráficos que foram publicados pela equipe de apoio da Uesb em seus Boletins Informativos contra a covid-19.
No primeiro, relativo a um histograma do quantitativo acumulado de casos semanais da covid-19 em Vitória da Conquista e microrregião, é perceptível, que nos últimos seis meses ocorreram uma relativa constância no registro de crescimento de casos. Nos meses de julho e agosto, o número de novos casos representou para Conquista, aproximadamente 70% e 50%, respectivamente, do total de casos acumulados desde o primeiro registro da doença. Contudo, estes dados que retratam um avanço acentuado da pandemia, provavelmente decorrente também do processo de interiorização, parecem não terem sido priorizados para balizar as tomadas de decisão relativas à gestão da crise visto as flexibilizações ocorridas neste mesmo período.
O segundo gráfico que apresento permite discutir um exemplo específico, mas de forma alguma exclusivo, deste descompasso entre cenários epidemiológicos e decisões dos gestores. O mês de agosto, conforme demonstra o gráfico de casos ativos, foi um dos momentos mais críticos relativos ao avanço da pandemia da covid-19 no município de Itapetinga. Contudo, vivenciou-se no mesmo período uma sequência de flexibilizações nos decretos municipais e uma drástica redução na periodicidade das reuniões e discussões do Gabinete de Crise do município.
Para finalizar essa contribuição, em contexto de reflexões e perspectivas, remeto-me a um comentário rotineiro que faço aos meus alunos de graduação e pós-graduação na Uesb, qual seja o de que o óbvio precisa sempre ser dito. A final de contas, infelizmente, mostra-se imperativo buscar reforçar que, ao desconsiderar as discussões de gestão da pandemia, a realidade dos fatos, bem com as contribuições científicas, é potencializar as chances de equívocos. Equívocos estes que invariavelmente resultam em prejuízos a serem contabilizados com vidas que não necessariamente estariam sendo perdidas. Estou confortável para afirmar que coletivamente nossa sociedade pode muito mais no enfrentamento da covid-19.
Carlos Bernard M. Cerqueira-Silva. Biólogo, doutor em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp. Diretor de Departamento de Ciências Exatas e Naturais e presidente do Conselho de Campus da Uesb, Itapetinga. Email: [email protected] e Instagram: @prof.carlos_bernard)