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Sofrimentos mentais decorrentes do trabalho exercido por bancários

Não precisamos ir tão distante para associarmos diversos sofrimentos mentais e distúrbios psicológicos com o trabalho desempenhado pelos bancários e bancárias. Uma simples pesquisa no Google nos traz incontáveis estudos, matérias e artigos que relacionam doenças e acometimentos à saúde dos trabalhadores e trabalhadoras às atividades exercidas nas instituições bancárias.

A partir da percepção de que muitos trabalhadores e trabalhadoras estavam sendo acometidos por tais problemas, os sindicatos e a advocacia começaram a buscar medidas e instrumentos que auxiliassem e diminuíssem a dor sofrida pelos bancários.

Nós, advogados e advogadas desta categoria de trabalhadores, acompanhamos de perto todos os desgastes psicológicos e, muitas vezes, físicos ocasionados pelas regras desumanas promovidas pela sociedade do capital e do lucro. Presenciamos diversas situações em que os bancos oprimem e humilham os empregados e as empregadas, seja com o esvaziamento de suas funções, seja com a transferência de localidade de trabalho, ressaltando que todas essas situações são acompanhadas das formas mais cruéis de assédio moral.

Atuar para essas causas trabalhistas acaba gerando angústia e insatisfação dentro dos nossos ambientes de trabalho, ora advindas pela falta de sensibilidade do judiciário para se debruçar com mais humanidade nestes processos, ora pela própria situação em que o trabalhador ou a trabalhadora se encontra, demandando por diversas vezes um atendimento e acompanhamento com mais cuidado e atenção.

Porém, convenhamos, nós – advogados e advogadas – não temos o preparo e a expertise necessária para conseguir lidar com o trabalhador ou trabalhadora que está sofrendo com doenças relacionadas ao trabalho e, muito menos, as faculdades de Direito possuem o condão de ensinar as teorias e práticas das funções de um psicólogo ou psiquiatra.

Assim, esse duplo grau de sofrimento continuará existindo e nós, advogados e advogadas, devemos continuar batalhando pelas garantias e direitos que os trabalhadores bancários fazem jus, tendo a percepção de que há cada vez mais bancários e bancárias nessas condições, que se veem oprimidos, humilhados e molestados, tudo em prol das enormes engrenagens do capital moderno, os bancos.

Para uma percepção mais palpável do leitor para a situação vivenciada por trabalhadores bancários e seus respectivos advogados, ilustramos em um breve conto o que nós vivenciamos ao lidarmos com o atendimento dos trabalhadores desta categoria tão afligida por exercer sua profissão em instituições que degradam e humilham seus empregados.

A sala de espera estava cheia, como geralmente acontece nos plantões de terça-feira.

Corri os olhos por aqueles rostos, vários deles eram clientes antigos. Mesmo sabendo que não a veria lá, na verdade meus olhos procuravam por Cláudia.

Às terças-feiras, o atendimento jurídico é direcionado às bancárias e aos bancários adoecidos. E eles são tantos, carregam em si tanta dor.

Lembro-me da advertência do diretor sindical no meu primeiro plantão de atendimento: “aqui você vai perceber que seu papel é metajurídico. Resolver processo é importante, é sua função aqui. Mas advogado de bancário não pode ser só advogado. Tem que ouvir com o coração. Tem que ser meio psicólogo, meio amigo, meio irmão”.

Demorei para entender aquela frase.

Durante muito tempo, eu me limitei a fazer meu trabalho de advogada e o fazia da melhor maneira possível, o Direito sempre me encantou. A reparação material era meu maior objetivo. Vibrava ao analisar sentenças procedentes, enchia meu ego após conseguir uma vista regimental em uma sustentação oral e me sentia amadurecendo profissionalmente quando tinha êxito em uma impugnação aos cálculos apresentados pelos bancos.

Hoje, muitas terças-feiras depois do meu primeiro plantão no sindicato, algumas coisas permanecem exatamente iguais.

Apesar dos anos que se passaram desde minha estreia como advogada de bancário, até hoje o plantão jurídico acontece às terças-feiras. Até hoje, às terças-feiras, a sala de espera fica cheia do momento em que o sindicato abre até o momento em que ele fecha as portas.  E não teria como ser diferente. Os bancos seguem (há anos) o mesmo modus operandi, ditando regras desumanas promovidas pela sociedade do capital e do lucro, numa busca incessante por metas cada vez mais altas, às custas da saúde mental e física de seus trabalhadores.

Para não dizer que absolutamente nada mudou, o plantão jurídico foi estendido. As terças-feiras passaram a ser insuficientes para atender todas as bancárias e bancários doentes. Abrimos a agenda para acrescentar mais três plantões na semana.

O número de adoecimentos é cada vez maior, assim como as sequelas na vida dessas pessoas. Já não se vê tanta sequela física, já que os movimentos repetitivos estão menos presentes agora que flertamos com o trabalho ditado pela Indústria 4.0. As marcas emocionais, no entanto, estas sim demonstram que vieram para ficar.

Eu também mudei. Cláudia me tocou.

O processo de Cláudia transcorreu bem do início ao fim, e eu me excitei com cada vitória: antecipação de tutela para reintegrá-la após a demissão arbitrária, sentença procedente para reconhecer o acidente de trabalho e a perda da sua capacidade produtiva, manutenção da decisão favorável no TRT e no TST, e, finalmente, execução finalizada em tempo recorde, com pagamento de indenização e pensão vitalícia para Cláudia.

Eu me habituei a ver Cláudia ao menos uma vez por mês. Ela ia, frequentemente, aos plantões de terça-feira. Queria acompanhar seu processo, claro. Todavia, queria mais. Ela era o resultado clássico da máquina de moer gente. Entrou no banco jovem. Orgulhosa, acreditava que iria fazer sua vida ali. Com o passar dos anos, foi adoecendo. Adoecendo a mente, o coração e a alma. Já não conseguia mais sorrir, já não conseguia se desvencilhar da dor que lhe foi imposta pelo empregador. As humilhações foram tantas, deixaram cicatrizes na alma, cicatrizes estas que apagavam cada dia mais o brilho dos seus olhos.

No dia em que fui fazer a prestação de contas do alvará judicial para Cláudia, eu me surpreendi com sua tristeza. Achava que ela iria ficar contente, finalmente poderia colocar um ponto final naquela história de dor. Mas não foi o que aconteceu. Pelo contrário, o fim do processo chegou e com ele Cláudia se deu conta de que ele não trouxe a reparação que ela acreditava que traria. O processo havia finalizado, mas o banco e suas violências ainda gritavam dentro de seu peito.

Foi o fim para Cláudia. Ao longo do processo, ela ainda tinha algo em que se apegar. Com seu término, ficaram apenas as velhas sensações de abandono, tristeza, humilhação e perda da esperança.

No dia em que Cláudia recebeu os créditos do processo, ela se suicidou. Não suportou lidar com o futuro que se apresentava à sua frente. Seu passado tinha sido pesado demais, o banco tirou o que ela tinha de mais caro: sua alegria.

Nunca mais verei Cláudia.

Mas a partir dela, acabei me abrindo para, de fato, tentar conhecer em profundidade as tantas Marias, Josés, Leilas, Maurícios, Vanessas e Gustavos que continuavam a frequentar o plantão. Cada um me mostrando à sua maneira o que é ter dor na alma. Uma dor profunda, de quem sabe que nem sempre foi triste, mas que diante de tanta dureza, não consegue mais seguir a jornada sem ajuda.

Hoje, depois de Cláudia e de tantas terças-feiras repletas de sentimento, as palavras do diretor fazem sentido para mim.

Sinto que, efetivamente, estou fazendo meu trabalho quando percebo que me investi no meu papel metajurídico. Ganhar processo é importante, é fundamental e segue sendo a forma como ganho a vida. Mas meu papel mesmo…. ah, esse eu faço quando tenho a ousadia e a disposição de ser um tanto psicólogo, um tanto amigo, um tanto irmão. Meu trabalho eu faço mesmo quando consigo entender que posso contribuir no resgate da vida.

 

Fonte: Carta Capital

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