Por Benjamin Nunes Pereira*
A Revolta dos Malês, que chegou ao ponto mais alto em 1835, foi a que mais se destacou entre todas, completou neste mês de janeiro de 2021, 186 anos, dessa insurreição de escravos urbanos islamizados (malês). Ocorreram levantes na Bahia em 1807, 1809, 1813, 1826, 1828, 1830, 1835 e 1844. Existiam nessa época milhares de escravos africanos das etnias hauçá e nagô, procedentes do golfo de Benin. Eram dotados de conhecimentos culturais, e muitos sabiam ler e escrever em árabe. Os movimentos insurrecionais envolveram escravos e também negros libertos de Salvador e dos engenhos do recôncavo baiano. Eles dirigiam-se contra os brancos e visavam à tomada do poder na Bahia. Dotados de grande organização (estavam enraizados em toda Salvador e no recôncavo, tinham uma organização militar detalhada e conseguiram mobilizar recursos financeiros para os levantes), as insurreições fracassaram quase sempre devido à denúncia de traidores.
Antes dos quilombos, houve grande marco da resistência negra à escravidão. É importante salientar as rebeliões de cunho religiosos da Bahia e a importância de organização dos negros, criando governos secretos que mantinham um controle absoluto sobre a massa escrava muçulmana. Em dezembro de 1808, iniciou-se o processo de insurreição. Eram hauçás e nagôs, unidos pela fé islâmica. O costume dos padres católicos de separarem as nações em irmandades religiosas, para evitar a troca de informações, ainda não tinha penetrado no recôncavo baiano. E as duas nações, reconhecendo-se irmãs pelo islamismo, juntaram-se na rebelião que terminaria com a fuga em massa de hauçás e nagôs das cidades, em janeiro de 1809. A organização dessa fuga foi de uma sociedade secreta do governo dos negros, chamada OGBONI. Os escravos fugiam, encontravam-se no mato e voltavam às estradas, assaltando as fazendas, matando senhores e libertando outros negros, incendiando engenhos.
Uma importante rebelião dos negros hauçás islâmicos na Bahia foi a de fevereiro de 1813, quando 600 homens invadiram e mataram senhores, destruindo os engenhos. Eram todos negros hauçás, que foram mortos ou fugiram, alguns suicidaram para não caírem prisioneiros, 34 deles foram condenados à forca e os açoitaram duramente em praça pública.
De 1826 a 1830 vários choques entre nagôs aquilombados e forças comandadas por capitães-do-mato resultaram em muitas mortes de lado a lado, com extrema violência, torturas públicas e libertações de escravos e fugas para os quilombos. Essa violência foi marco para uma grande rebelião que explodiria no dia 13 de abril de 1830, fracassada porque uma negra convidada a participar denunciou o movimento. Essa incrível determinação de luta era alimentada pela fé religiosa o que não invalida a função social da luta, dirigida para se conseguir o direito de ter respeitada sua crença, a resistência contra o aviltamento da cultura africana. O que não lhes dá apenas um caráter guerreiro, como de homens que sabem ler e escrever em árabe.
FUNDAÇÃO DE UM ESTADO – Por tudo isso, a rebelião dos Malês de 1835, não era tão simples e anárquica como as primeiras, reuniram-se também nagôs e hauçás, os malês para fundarem um estado teocrático na Bahia. Desde 1805, a fundação desse Estado teocrático está sendo orientado desde a África. Os ALUFÁS trabalharam arduamente na Bahia: ensinavam a ler o Alcorão, a escrever em árabe ou em hauçá e iorubano com caracteres árabes e doutrinaram os negros. O grande erro dessa guerra santa era justamente ser “santa”: a jihad era dirigida contra todos os infiéis, não havendo distinção entre negros e brancos. Por isso, sem a solidariedade dos negros e das demais nações, ocorreram várias delações. A jihad dos malês dividia os negros. Em 1835, os escravos de outras religiões, católicos ou de vários sincretismos afro-baianos, temeram que a vitória dos malês implicasse um banho de sangue dos demais e delataram assustados a rebelião.
Mesmo assim, a guerra durou mais de uma semana. Mesmo sendo precedido de uma repressão violenta, como o enforcamento sumário de alguns líderes, para atemorizar a massa fanatizada. Foram mortos mais de cem negros só em Salvador, para evitar a rebelião. Embora de fundo nitidamente religioso, muitos negros sobreviventes atribuíram os motivos da guerra à resistência dos senhores brancos em aceitarem o pagamento para alforria dos escravos, o que deve ter contribuído para a disposição de luta dos malês.
De qualquer forma, foi notável o fervor religioso dos negros malês. Essa determinação religiosa deles deu-lhes força militar: se não fossem as delações que ocorreram justamente pelo sectarismo dos hauçás e nagôs, não aceitando no seu Estado teocrático ninguém que não fosse muçulmano, provavelmente eles venceriam a guerra na Bahia. Chegaram a dominar os postos policiais e as duas entradas da capital baiana, só foram vencidos quando foram encurralados pela cavalaria. Tiveram que precipitar a luta, por causa dos delatores, o que enfraqueceu sua posição e não lhes deram tempo de arregimentar toda a massa muçulmana para o grande Jihad.
É importante dizer que os hauçás e nagôs, os protagonistas da revolta dos malês, eram os mais letrados dos negros africanos no Brasil. E tinham ligação religiosa com a África, de onde se orientavam as guerras santas. Em 1607, chegaram os primeiros hauçás no Brasil, trazendo uma religião que jamais iriam abandonar. Uma religião que implicava também um sistema de cultura, onde era preciso saber ler e escrever. Os escravos hauçás, rapidamente, passaram a ter um nível cultural bem superior ao dos seus senhores. Organizando-se secretamente, formaram uma seita poderosa, com liderança exercida desde a África. A maioria dos negros hauçás, escravos no Brasil, sabia ler e escrever em árabe, muitos se reunindo em grupos para estudar o Alcorão.
Os documentos apreendidos na malograda rebelião dos malês de 1835 demonstrava o alto grau de alfabetização dos hauçás: todos os planos da revolta estavam escritos em árabe, detalhadamente. Além disso, junto a esses documentos comprometedores, a polícia baiana apreendeu muitos livros, além de inúmeros cadernos manuscritos: literatura hauçá feita na Bahia, que a polícia jogou fora. Os baianos chamavam todos os escravos muçulmanos nagôs (também conhecidos como iorubas, nome da língua que falavam) e hauçás, de malês.
As rebeliões culminaram no levante de 24 de janeiro de 1835, quando os escravos chegaram a dominar Salvador e atacaram quartéis e prisões, sendo finalmente derrotados pela cavalaria. Esse levante deixou um saldo de 60 mortos, elevado número de feridos e 281 prisões de negros, dos quais cinco foram enforcados.
* Benjamin Nunes Pereira, é bancário aposentado, Historiador – Uesb, com especializações: Orçamento Público – UFBA, Antropologia com ênfase em culturas Afro-brasileira, Uesb, Bacharel em Direito – Fainor, membro da Academia Conquistense de Letras e membro da Casa da Cultura de Vitória da Conquista Bahia.
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