Como a Política Nacional de Cuidados em diálogo com organizações da sociedade civil pode reduzir a desigualdade de gênero, organizar e apoiar o trabalho de cuidadoras e cuidadores
Cuidar de um bebê, cuidar da casa, cuidar para não se machucar, cuidar de um idoso com diferentes graus de dependência, cuidar das finanças, cuidar das necessidades das crianças. Em uma família, tudo é cuidado. Essas atividades são fundamentais para o bem-estar e a reprodução da vida, mas são marcadas por desigualdades de gênero, de raça, sociais e territoriais.
Não é novidade, por exemplo, que esse cuidado é distribuído de forma injusta e desigual entre homens e mulheres dentro e fora de casa. Tão importante quanto é dizer que tampouco esse cuidado feminilizado é feito da mesma forma entre mulheres brancas e negras.
Mulheres gastam em média 21h18 por semana com atividades domésticas e de cuidado, enquanto os homens gastam em média 11h48, segundo dados da pesquisa Outras Formas de Trabalho, feita a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD) de 2022.
Se para as mulheres brancas essa cifra era de 21 horas semanais, para as negras é de 22,3 horas. Cenário que compromete as possibilidades de geração de renda e de autonomia econômica, aumentando a pobreza e a desigualdade.
Cuidado toma tempo e dá trabalho. Todas essas atividades do cotidiano, seja aquelas feitas de forma remunerada, como as empregadas domésticas, babás, cuidadoras, cozinheiras, enfermeiras, ou de forma não remunerada, como se costuma ver mães, tias, avós e mesmo meninas fazendo, estão dentro do que se chama hoje de Economia de Cuidados.
Essa é a economia que dá conta de tudo o que é necessário para a sustentação da vida no dia a dia. Botar a mão na massa das tarefas do cotidiano de todos, no entanto, não é, ou não deveria ser, apenas das mulheres em uma família ou comunidade.
É papel do Estado atender às necessidades da população, garantindo a reprodução humana e o bem-estar de toda população. E cuidar desse bem-estar terá impacto na força de trabalho, na economia e no desenvolvimento da sociedade como um todo.
Isso significa creches, atendimento à saúde, lavanderias públicas, cozinhas comunitárias, e também organizando o trabalho remunerado dos cuidados, dando condições dignas para esses trabalhadores.
A Política Nacional dos Cuidados
Para jogar luz nesse tema, que se em uma ponta sobrecarrega a mulher e em outra gera uma grande demanda por profissionais qualificados, valorizados e equipamentos públicos, o governo federal está elaborando a Política Nacional de Cuidados.
Em outubro de 2023 o governo lançou o Marco Conceitual da Política Nacional de Cuidados, e instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI). São 20 ministérios e mais três entidades públicas – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – trabalhando juntos para elaborar a política.
Esse GTI é coordenado pela Secretaria Nacional de Cuidados e Família, do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, chefiada pela socióloga Laís Abramo, em conjunto a Coordenadoria Geral de Políticas de Cuidado, do Ministério das Mulheres, chefiada por Letícia Perez.
O grupo tem três grandes tarefas: propor a Política Nacional de Cuidados, que são regras, leis e diretrizes organizadoras; montar o Plano Nacional de Cuidados, que terá função de dizer como as políticas públicas serão executadas na prática pelos ministério, e por fim o elaborar um diagnóstico sobre o contexto dos cuidados no país. A meta é que esses trabalhos sejam entregues a partir de junho deste ano.
Laís Abramo explica que a criação da Política Nacional de Cuidados parte do princípio de que todas as pessoas, ao longo da vida, ofertam e demandam cuidados, sobretudo crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência.
“A gente considera que o cuidado deve ser entendido como um direito de todas as pessoas ao longo do seu ciclo de vida e também como um bem público”, afirma.
A secretária da Mulher Trabalhadora da CUT, Amanda Corsino, tem feito esse debate junto com o GTI do governo federal. Ela reafirma a necessidade de mais investimento em equipamentos e políticas públicas que ocupem o espaço criado pelas necessidades de cuidados, como mais vagas em berçários e no ensino infantil, ampliação do ensino integral nas escolas, assim como mais restaurantes e lavanderias públicas.
“Temos reforçado com o governo também a necessidade de acolhimento e amparo aos trabalhadores de cuidados que fazem o turno noturno, como é comum em unidades de saúde e instituições de acolhimento de idosos. Uma mãe solo sem rede de apoio não tem onde deixar seu filho à noite, por exemplo”, explica a secretária.
Nos cuidados com idosos, tanto dentro de instituições públicas e privadas quanto no trabalho que cuidadoras e cuidadores fazem na casa dos próprios empregadores, o período de trabalho feito à noite é uma condição e um contexto importante de ser levado em conta.
A crise dos cuidados no Brasil: um país que envelhece
O diagnóstico que mostrará em que pé o Brasil está é fundamental para que o governo possa incidir (explicar melhor). Na França, por exemplo, os idosos representam de 14% a 20% do total da população, e as políticas públicas desempenham um papel central no cuidado.
Os idosos com 60 anos ou mais e com alguma perda de autonomia têm o direito de receber o que os franceses chamam de “abono personalizado de autonomia”, independente do nível de recurso de cada um, embora o valor desse abono leve em conta esse nível.
O abono deve ser usado para pagar as despesas que o idoso precisa para ficar em casa e contar com cuidadores profissionais, ou parece ser acolhido em uma instituição. Os familiares desse idoso também podem receber o benefício.
No Brasil não há políticas públicas exclusivas para os cuidados de idosos, como no exemplo francês. Para se ter uma ideia, na cidade de São Paulo, a mais populosa do país, a oferta de instituições públicas de acolhimento aos idosos é muito abaixo da demanda.
Em 2018, o número de idosos na capital paulista era de 1.733.664 (14% da população da cidade), enquanto o número de vagas nessas instituições era de 19.660. Embora nem todos precisem de acolhimento, a defasagem é muito grande. Os dados são do Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade).
O envelhecimento da população é um sinal vermelho para o vazio de políticas públicas brasileiras nesta área. Dados do IBGE mostram que de 2010 a 2022 (portanto em 12 anos), o número de idosos no Brasil cresceu 57,4%. Neste ritmo, no próximo ano o Brasil ocupará o 6º lugar no ranking mundial de número de idosos.
Por outro lado, as mulheres e os casais brasileiros estão diminuindo a quantidade de filhos, e são os filhos que, numa sociedade cujo cuidado é estruturado na organização familiar, se encarregam, quase que sem nenhum tipo de apoio, das necessidades dos mais velhos.
A sobrecarga da mulher
Nem todo filho, e quase sempre uma filha. Filhas que têm suas vidas, suas casas, suas próprias famílias, e que estão no mercado formal de trabalho. Isso significa que a figura daquela mulher da família, às vezes solteira, viúva, às vezes uma tia, uma avó, que sempre trabalhou em casa e cuidou de todos, com disponibilidade de tempo, está em falta no mercado.
“Isso é muito bom para a independência financeira e autonomia das mulheres, que têm o direito de gerir o seu próprio tempo como por bem entender, vemos isso com bons olhos, mas, enquanto Estado, precisamos agir para suprir essas necessidades”, afirma Letícia, do Ministério da Mulher.
Como esse trabalho de cuidado acontece na prática e se organiza numa determinada sociedade? Todas as pessoas, ao longo do seu ciclo de vida, vão precisar em algum momento.
A socióloga Helena Hirata, estudiosa do tema na França, no Japão e no Brasil, afirma no livro O Cuidado – Teorias e Práticas, que há um equívoco em deixar de lado o fato de que a vida é vulnerável, ou seja, qualquer uma pode precisar de cuidado em qualquer fase da vida, e não apenas quem tem a autonomia limitada, como crianças, parte dos idosos e pessoas com deficiência.
O problema é que na atual organização social brasileira, esse trabalho de cuidado ainda é visto como se fosse uma vocação natural das mulheres. Uma injustiça histórica que impacta a vida da mulher e precisa ser corrigida, e por isso que as pensadoras no tema falam em sociedade do cuidado, que deve envolver a família – homens e mulheres em divisão equânime do trabalho -, governo, empresas e também a comunidade, os territórios.
“O mais urgente é construir políticas considerando o sujeito que cuida. É preciso transformar essa realidade e transformar a percepção da sociedade sobre os cuidados de modo a promover a co-responsabilização, tanto de gênero, entre mulheres e homens, como social. Se as famílias hoje são mais responsabilizadas, o Estado também precisa ser responsabilizado, a comunidade, as empresas. O mais urgente é firmarmos essa perspectiva transformadora do cuidado”, defende Letícia.
Ao não ser reconhecido como um trabalho, essa mulher não é valorizada. Muitas vezes, significa um número muito grande de horas diárias dedicadas a esse tipo de trabalho que vão criar barreiras para a inserção profissional das mulheres no mercado, para a conclusão das suas trajetórias educacionais, para o lazer e para a vida pública.
Por isso, a garantia do direito ao cuidado, explica Laís, está “relacionada também com a garantia do direito à igualdade de gênero, que as mulheres tenham os mesmos direitos que os homens.”
No Brasil, hoje 16% de todas as mulheres que estão no mercado de trabalho são trabalhadoras domésticas. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, os trabalhadores do setor dos cuidados – trabalhadoras domésticas, cuidadores de idosos, de pessoas com deficiência, auxiliares de enfermagem, as trabalhadoras domésticas são 25%.
Assim como no caso das trabalhadoras domésticas, por não ser um tipo de atividade que não é considerado um trabalho, “por ser considerado algo que quase teria que ver com a suposta natureza feminina, esse trabalho é muito desvalorizado”, explica Letícia.
A desvalorização desse trabalho impacta em quem desempenha o cuidado remunerado, e que hoje não há nenhum tipo de legislação, proteção social e formação. “Cuidar de um idoso é muito diferente do que cuidar de uma criança, por exemplo. E muitas vezes esses trabalhadores estão dentro das casas, então é preciso organizar e valorizar essa atividade”, complementa Laís.
Por um trabalho e uma vida decente
A coordenação do GTI do governo federal que se debruça sobre a Política Nacional de Cuidados já sabe, por exemplo, que são as mulheres as grandes encarregadas (e sobrecarregadas) por esse trabalho.
Sabe também que são as mulheres negras em maioria, e que há diferenças importantes de suporte a essas mulheres a depender do lugar onde vivem em uma cidade, ou da região onde vivem no país.
Por esse motivo, Laís explica que o governo está em contato permanente com estados e municípios. Nas regiões Norte e Nordeste, por exemplo, a oferta de creches e berçários é menor em comparação com as regiões Sul e Sudeste.
Ou seja, o trabalho do cuidado vai impactar mais ou menos na vida de uma mulher que desempenha esse papel se em seu bairro houver ampla oferta de serviços públicos, como transporte público, creches, escolas, unidades de saúde, trabalho, comércio.
Em novembro de 2023 a CUT participou a convite da UNI Global Union de um extenso seminário que debateu o tema com entidades sindicais filiadas à UNI, mas também representantes dos governos na América Latina.
Nessa ocasião o governo brasileiros pode apresentar a Política Nacional de Cuidados, e as organizações de trabalhadoras e trabalhadores reforçar a necessidade da Economia de Cuidados ser pensada com mais intensidade a partir da perspectiva de quem cuida.
A secretária de Comunicação da CUT, Maria Faria, que integra o Conselho Nacional de Assistência Social da central, participou do encontro. “Estamos discutindo o escopo do que é esse trabalho. Como será a regulamentação, a formação dessas cuidadoras e cuidadores, como os profissionais da saúde se incorporam nesse setor, quais são as melhores condições para fornecer esse trabalho, de maneira que ele seja qualificado também para quem precisa dele.”
Fonte: CUT