Destempos, por Carlos Nascimento
Praia de Matosinhos, uma caminhada. Concreto, calçada larga, crianças, balões, skates, trotinetes, bicicletas, famílias. O verão no norte português entrega um calor aconchegante e o sol brilha até tarde. São oito da tarde e o tempo aguarda minha chegada.
Revivo e reconheço estas paragens. Na areia, telas coloridas protegem corpos alvos do vento. Poucos sombreiros. Jovens conversam, namoram, bebem, fumam, esportes, gente se diverte, muita gente. Ao longe miúdos, com hormônios demais, corajosos e brincantes, se lançam ao mar de gelo. Gelados Olá para adoçar.
Mais cedo, numa cafeteria, um sorvete, um amigo. Caramelo salgado, meu novo gosto. Um homem que muito me ajuda a entender e a aceitar o que é “ser homem”. Masculinidades. Difícil pensar nisso numa realidade onde essa espécie não se toca, não troca sinceridades. Tratados transatlânticos. Uma conquista. Um grande homem, um ser humano. Bons encontros. Sotavento.
Entrego agora ao tempo o tempo que ele tem direito de me tomar à vida. Procuro olvidar-me do celular, um vício, um consumo, cigarro pós-moderno. Tomá-lo à mão, um ato maquinal. Ansiedade. Geringonça de merda!
Olhar ao mar, ao sol que ainda boia sobre o horizonte. Uma revoada de gaivotas descola da lagoa da mata do Parque. Curvam por sobre a anêmona voadora. Como grasnam. Parecem reclamar daquele bicho gigante. Bicho d’água fora d’água, que insiste em flutuar em seu caminho. Quem inventou esse treco? Cruzam meu céu. Grasnam muito. Grasnam alto.
O sol me queima o rosto. Um agrado. Sento-me à balaustrada, miro os frequentes. Acho curiosas as vestes, fatos estranhos. Lá no centro, nas campanhas, nos shoppings, nos outdoors, modelos de corpos bronzeados exibem maiôs justos, cavados, decotes, volúpias. Um apelo à sensualidade que a estação recomenda.
No meu campo de vista, shorts largados, biquinis velhos, esgarçados, corpos pálidos, esquálidos. Algo que me sugere um descaso com a vaidade ou com o consumismo. Talvez um desleixo à nudez ou à lascívia que esperava achar por ali. Me incomoda. Sinto falta de meu Porto da Barra de corpos coloridos, brilhantes, roliços, excitantes. Eros não se ordena. Do Porto ao Porto, cada lugar seus caminhos.
De coração aberto, me seduz este sítio também. Dos períodos que por cá estive, múltiplos acolhimentos. O caminhar me resgata tantas outras tardes nesta praia. Sem nada a fazer, como agora. Por vezes pedalando, correndo, indo ao mar de gelo. Apenas passando, deixando a tarde passar.
Penso na emergência que se tem de tudo fazer. Nesses arrojos de altos desempenhos, de objetivos, metas, eficiências, de auto-imagens. Todos tensos a correr em desatino. Tudo em simultâneo. Algo a ser resolvido sempre. Especialistas em tudo, seres rasos, inconcretos, vazios. Bombardeios de informações. Bombas de depressão.
Afinal, do tempo o que se ganha? Tempo? Resultados? Sucesso? Se supera o outro, que também corre? Se vence a velhice? Atrasa a morte? A morte está sempre ali, um passo à frente. Tolice.
Destempos. Deixe a tarde passar. A revoada demanda tempo para enredar o ar, o sol para baixar ao mar. A criação requer. O descanso requer. O bom gozo requer. O tempo dos joelhos e da calvície traz também belezas, qual essa caminhada a Matosinhos. Com este vem o gosto do vinho, do charuto, do chocolate amargo. Não dá pra antecipar. Não dá pra vencer. Não tem o que vencer. Não tem graça.
Ainda mais cedo, quando deixava o apartamento, me deparei em inveja doutros miúdos, que do cais se jogavam ao Douro. Se atrasado não estivesse (o tempo), me despia e caia n’água. A criança e a água ocupam um lugar comum. Mesmo quando competindo mar adentro, o prazer sempre supera o esforço, e a meta. Uma atração inconteste. Um deleite.
Avanço à anêmona encarnada, observo sua dança ao vento. Um Cornetto de Brigadeiro aditiva os sentidos. Brigadeiro. Vejo, e questiono, como impactamos a cultura e o comportamento desse povo. O colonizado, ora maior que o colono, invade e toma suas terras, altera seus costumes. Me espanta que ainda nos tratem tão bem. Num cotidiano tão calmo, parece haver um fascínio por nossa bagunça, sei lá. Um contraponto.
Na esplanada casais gays se dão. Às mãos se dão. Aos beijos se dão. Se os observo, se me importo, ainda não estou bem. É preciso melhorar. É estranho como trabalho isso de todo o sempre e, por vezes, me percebo tendo tanto o que andar. Bem, andando estou. Hora dessas chego lá.
Lembro da vida, na família, nos conflitos, nos relacionamentos. No apego e desapego necessários em cada ocasião, como esta. A solidão, mesmo que breve, propicia importantes momentos. Volto à água em meditação. Noutros Portos, no mar, quando nado, me sinto só e me sinto pleno, um afeto por vezes conflitante pois muito desejo com muitos compartilhar, mas é subjetivo, só se produz em mim, só se produz ali.
Baixo à planície. À minha esquerda o acesso ao Parque. Mais ciclistas e crianças. Academia à beira mar. Pudera a vida estacionar em determinados episódios. O controle que se deseja ter do tempo mais uma vez. Em nostalgias, em fotografias que congelam, em textos como este. Mas segue ela, para o que vier. Lidar com as alegrias e frustrações do viver, um desafio sempre.
Castelo do Queijo, é finda minha caminhada. Já passa das nove, o sol agora não flutua tanto. Procura leito em seu reflexo. Dentro em pouco cai a temperatura. Mesmo no verão, esfria.
Agora o autocarro. Tenho consciência da despedida. Triste. O Porto fica mais uma vez para trás, na memória. Ligações que se perpetuam, em outras caminhadas, quem sabe noutras praias, quem sabe aqui de novo, numa outra tarde qualquer.
* Carlos Nascimento é mestre em Ciências da Comunicação, bancário da CEF/Candeias e delegado sindical, Carlos Nascimento.