Pejotização pode acabar com direitos trabalhistas, aumentar trabalho escravo, diminuir número de trabalhadores com deficiência, aumentar a desigualdade salarial entre gêneros e impactar nas contas públicas

A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, de suspender, em 14 de abril, as centenas de milhares de ações que pedem o reconhecimento do vínculo empregatício em contratos de trabalho como Pessoas Jurídicas (PJs), a chamada “pejotização”, vai retirar todos os direitos dos trabalhadores, prejudicar o combate ao trabalho escravo, impossibilitar a aplicação da Lei da Igualdade Salarial e o preenchimento de cotas para a contratação de Pessoas com Deficiência (PCD), por parte das empresas, além de impactar nas contas públicas, alertam a Associação Brasileira da Advocacia Trabalhista (Abrat), entidade que articulou a Mobilização Nacional em Defesa da Justiça do Trabalho, e o Ministério Público do Trabalho (MPT), que embora não faça parte dessa mobilização é um órgão de defesa dos direitos trabalhistas.
Sem o reconhecimento de vínculo empregatício, com a pejotização irrestrita, as empresas ficarão livres para contratar trabalhadores e trabalhadores sem direito algum, permitindo que, por exemplo, as mulheres, que já recebem menos que os homens, fiquem impossibilitas de serem beneficiadas pela lei, assinada pelo presidente Lula, que torna obrigatória a igualdade salarial entre homens e mulheres que exercem a mesma função. Sem registro em carteira é impossível saber a diferença salarial. As mulheres também perderão o direito à licença-maternidade.
Outro impacto é no combate ao trabalho análogo à escravidão. Quando empregadores são flagrados explorando os trabalhadores uma das indenizações a serem pagas são os direitos trabalhistas, mas com a pejotização irrestrita eles podem dizer que o “contrato” foi verbal. A pejotização permite que os contratos possam ser feitos verbalmente, sem necessidade de um documento assinado entre as partes. Desta forma, os trabalhadores resgatados nessa situação ficarão sem indenização trabalhista.
Um exemplo foi a decisão de um juiz no Pará que suspendeu uma ação do MPT, de trabalho análogo à escravidão, por entender que o caso se enquadrava em pejotização irrestrita, cujos julgamentos foram suspensos pelo ministro Gilmar Mendes, conta o procurador Renan Bernardi Kalil, coordenador nacional da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret), do órgão.
“Quando você encontra uma pessoa em condições análogas à escravidão, o empregador pode dizer que contratou como PJ [Pessoa Jurídica], mas não existe resgate de pessoa jurídica. Uma pessoa jurídica não vai ser escravizada, quem é escravizado é o ser humano, é o homem ou é a mulher que está trabalhando naquelas condições”, exemplifica Kalil.
Apesar dessa decisão, o procurador do MPT orienta que o trabalhador que teve um contrato de trabalho fraudulento faça o ajuizamento da ação, porque dependendo do tempo em que ele realizou a atividade pode acontecer a prescrição do processo e de seus direitos.
“O prazo para que o trabalhador ajuíze a ação é de dois anos após a sua saída da empresas, mas já teve casos que ficaram mais de um ano suspensos no Supremo. Então, toda a cautela é pouca, e o trabalhador não pode contar com a expectativa de uma decisão mais imediata”, afirma Kalil.
Hoje os inquéritos civis e investigações em curso do MPT sobre contratos fraudulentos são 4.708. Esses números são diferentes das associações trabalhistas porque o órgão trabalha com ações coletivas e não individuais.
A pejotização também impede o cumprimento de cotas para a contração de Pessoas com Deficiência. Hoje a legislação determina que empresas com 100 a 200 empregados, tenham uma reserva legal é de 2%; de 201 a 500, de 3%; de 501 a 1.000, de 4%. As empresas com mais de 1.001 empregados devem reservar 5% das vagas para esse grupo. Sem a carteira assinada o número de da folha de contratações diminuirá, impactando no índice a ser preenchido. Esses são apenas três exemplos do que pode ocorrer com os trabalhadores.
As consequências do trabalho sem carteira assinada também serão nefastas para a arrecadação do FGTS, da Previdência, de impostos e outros tributos necessários para a economia do país.
Abrat reage
Diante da gravidade desse quadro, a presidente da Associação Brasileira da Advocacia Trabalhista (Abrat), Elise Correia, se reuniu com a Associação Nacional das Magistradas e Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e a Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT), para darem início à Mobilização Nacional em Defesa da Justiça do Trabalho. O movimento recebeu apoio da CUT e das demais centrais sindicais.
As pessoas, os acidentados, não terão previdência para pedirem o afastamento. As pessoas não têm noção da dimensão dessa decisão e não é um impacto para daqui a 10 anos, é para daqui dois, três anos. E serão enormes, as pessoas não terão 13º para injetar na economia do país. Não vai ter FGTS, nem seguro-desemprego. Por isso que é importante que os trabalhadores tenham um vínculo empregatício
Em nota, o MPT alertou para o crescimento vertiginoso da pejotização e de outras modalidades de simulação de contratos civis que buscam mascarar a relação de emprego. Apenas no campo dos Micro Empreendedores Individuais (MEIs), os números saltaram de 11.316.853 em 2020 para 14.820.414 em 2022, ou seja, um aumento de 3.503.561 em dois anos. Isso impõe severos prejuízos ao trabalhador brasileiro, que fica à margem de inúmeros direitos trabalhistas.
Segundo o procurador Kalil, a pejotização irrestrita é pior do que a reforma Trabalhista, de 2017, do governo Michel Temer, que retirou mais de 100 itens da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), porque ainda que ela tenha reduzido o escopo de proteção do trabalhador e da trabalhadora, ela não acabou com o direito do trabalho, e havia alguns parâmetros em face dos quais se podia fazer disputas de interpretação no Poder Judiciário.
Para o MPT, a pejotização é uma fraude trabalhista, porque ao invés de você contratar um empregado, uma pessoa que preenche todos os requisitos da CLT, que são previstos no artigo 2º e 3º, é contratada uma pessoa jurídica como prestador de serviços.
Na verdade, o empregador quer contratar um empregado. Se você permite que exista essa opção você vai tornar facultativo o regime de emprego e, consequentemente, é difícil de vislumbrar alguma empresa que vai achar melhor contratar um empregado do que um PJ
Justiça do Trabalho em xeque
Outra grande preocupação é a de que a pejotização vai permitir que os casos desse modelo de contratação sejam julgados, a princípio pela justiça comum, e não pela trabalhista. Isto porque pelo contrato ser considerado entre duas pessoas jurídicas quem analisa esse tipo de processo é a Justiça Comum. Somente se o juiz entender que houve fraude contratual que o caso será remetido para a esfera trabalhista.
“A Abrat se reuniu com a Anamatra e a ANPT para que as três entidades pudessem trabalhar de forma conjunta sobre a questão da competência para não ter esse esvaziamento e enfraquecimento da Justiça do Trabalho. Foi a primeira questão que a gente tomou para ter o cuidado de não ter esse esvaziamento e enfraquecimento absoluto que vai ter, porque hoje há uma média de 40% das ações tratando sobre a questão de reconhecimento de vínculos de trabalho”, diz Elise. Segundo ela, apenas entre o ano passado e este ano deram entrada 500 mil novos pedidos de reconhecimento de vínculo empregatício.
A advogada estranhou a decisão do ministro Gilmar Mendes já que o processo que motivou a suspensão de todas as ações sobre pejotização, já tinha sido indeferido pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).
“Foi um caso em que o autor teve seu reconhecimento de vinculo perdido na 1ª Instância. Ele recorreu, ganhou na segunda instância, mas perdeu no TST [instância maior da Justiça do Trabalho}”, conta Elise.
Próximos passos
A Abrat vai pedir para ser ouvida como Amicus Curae (amigos da corte, quando uma entidade pode expor a sua opinião mesmo que não tenha seu nome incluído no processo), no STF.
“Nós já estamos dialogando com diversas entidades e com os ministros da Justiça, Ricardo Levandowski, do Trabalho, Luiz Marinho, com a Procuradoria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, com membros do Senado Federal porque existe um Projeto de Lei que trata especificamente sobre a competência, de que essas relações de trabalho devem ser julgadas pela Justiça do Trabalho e já teve parecer favorável na CCJ [Comissão de Constituição e Justiça] do Senado, conta Elise.
A Abrat também solicitou agenda com os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, o Advogado-Geral da União, Jorge Messias e com os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), porque as decisões da corte terão reflexos, caso caia a competência da Justiça do Trabalho.
O MPT, por sua vez, segundo o procurador Kalil, está acompanhando as movimentações, conversando com diversos atores que estão fazendo essas manifestações, tendo, inclusive, participado da reunião do Fórum Interinstitucional em Defesa dos Direitos Sociais (FIDS), entidade que defende os direitos trabalhistas e previdenciários, criado na época da Reforma Trabalhista, e que também está atuando na questão da pejotização.
O órgão também está conversando com a Procuradoria Geral da República, que o representa no Supremo Tribunal Federal, com parlamentares e todas as movimentações que são possíveis dentro dos limites das atribuições constitucionais do órgão.
Fonte: CUT