Por Carlos Nascimento*
Conta uma lenda que Zambelê, escravo revolto fora decapitado ao tentar salvar do tronco um velho negro, companheiro de labuta e de sofrimentos. Seu corpo, enterrado no terreiro da casa grande. Sua cabeça, ao pé de uma oiticica mato adentro. Sua alma, vaga, desde então à procura de conforto, da reiteração da cabeça sumida. Em suas andanças de tudo viu e a tudo vê. A ele se apela o encontro das coisas perdidas.
Ainda que outras interpretações sejam dadas à origem deste personagem, penso como é curioso ver que ora se perde ele, Zambelê, de nossa história, ao ser sutilmente suprimido da letra da cantiga de roda. Perde-se a poesia, a música, a métrica, a rima. Perde-se a lenda.
Santa Rita Pescadeira, entidade do Jaré, em Torto Arado[1], chora a morte de dona Miúda, onde se fazia encarnar mulher para “se apresentar entre os homens (…) aparecer para este mundo”. A perda de dona Miúda significa a condenação da Santa a errar à procura doutro corpo, mas também ao risco de sua própria morte, uma vez que o enfraquecimento das crenças do seu povo, ou as violências perpetradas pelos “avanços civilizatórios”, corroboram para o escassear de novos corpos que lha possam acolher. Morre a fé, morre a tradição, morre a Santa.
Apagar uma alma, uma lenda, uma fé, uma cor, uma gente. Formas tênues de abusos. Recalques quase invisíveis. Dia a dia, metas alcançadas.
Esvaziamentos como estes, via de regra, não se registram como atos explícitos de discriminação. Quando muito, tratados por intolerância religiosa, o que sabemos, nunca o foi. Ouve-se dizer que mães de santo invadiram templos evangélicos e depredaram-lhe os equipamentos. Não, não se ouve. Nem se houve. Ouve-se dizer que gays atacaram executivos na Faria Lima. Tão pouco se ouve, ou se houve.
Nunca houve, e nunca haverá, justa guerra de narrativas, ou de ideias, enquanto uma das partes não tiver força e representatividade para o embate. Para tal, cabem os apagamentos e as descrenças. Estratégias usadas desde sempre em qualquer tipo de combate. Afinal, batalhas custam caro, e é sempre mais proveitoso bater-se com um inimigo enfraquecido em suas bases, em suas raízes.
Noutros campos, tambores indígenas e de terreiros ascendem aos trios elétricos para fazer a alegria de brancos blocos. Os mesmos toques, reprimidos em seus lugares de origem, servem ao carnaval de seus perseguidores. Estão lá estes tambores, tal qual mães de leite que, mesmo violentadas, alimentam seus filhos brancos, como quem queira mostrar-lhes como é pobre sua (eru)dita cultura: que não faz dançar, que não faz suar, que não excita. Estão lá também, mesmo violentados, seus filhos pretos, a puxar cordas, a vender cervejas, a bater celulares. Vai a casa grande, vai a senzala.
No cordão da alegria embolam-se pelas ruas os cínicos “somos todos iguais” e os pseudo arrependidos “nós, que invadimos as terras deles” ou “que os tiramos à força de sua África natal”. Mas “nós” quem? O EUropeu? Este homem branco, superior, que habita as certezas de todos? Este que tudo sabe?
Quem de tudo sabe é Zambelê, que por tudo anda. E talvez ele, se perdido já não estiver, possa dizer: Se liga mané! Tu és mestiço como eu! Se pensas que és d’além-mar, esqueces que d’além-mar também sou. Se achas que és dono de meu destino, lembra que me condenaste a seu destino construir, logo, dono dele sou também.
E na cegueira da balada de indivíduos que dançam sós, ofuscados pela luz de seus méritos, chegam ao Novo Mundo os neoescravos. Servos de aplicativos, sem direitos ou proteção, dependentes de sua própria empreita. Estes, ora nem tão negros, nem tão indígenas assim, mas tão pobres em perspectivas e em esperanças de liberdade.
Postos assim, os novos senhores da Terra seguem a comandar lugares inconcretos, onde sequer puseram os pés. Donos do um nada que a tudo domina. Concessores do direito amplo ao trabalho em campos de ninguém, sem normas, sem limites, sem humanidade.
Que Santa Rita Pescadeira encontre sempre novos corpos para cavalgar, novos caminhos para se perpetuar. Afinal, somos diversos, iguais em direitos, em deveres de respeito à dignidade de cada outro. Somos iguais, diversos em direitos, em deveres de respeito às necessidades de cada outra. Ou então só isso: beneficiários de preconceitos, escravos de preconceitos.
*Carlos Nascimento é diretor de Assuntos de Raça e Etnia do Sindicato dos Bancários de Vitória de Conquista e Região, mestre em Ciências da Comunicação e bancário da CEF/Candeias.
[1] VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. 2019.