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Artigo: A normalização da extrema-direita já ocorreu, por Vladimir Safatle

Por Vladimir Safatle*

Na semana passada, Wilson Gomes publicou, na Folha, artigo em que exortava a aceitar a normalização pretensamente inevitável da extrema-direita. Chamando as reações a tal processo de “dogmas” animados por alguma forma de cruzada moral contra setores muitas vezes hegemônicos das populações mundiais, o autor julgou por bem lembrar que “se o voto é o meio consagrado pelas democracias para legitimar pretensões políticas” não haveria razão alguma para agir como se a extrema-direita não fosse democraticamente legítima. Por fim, não faltou estigmatizar aqueles que falam em “fascismo” ao se referir atualmente a tais correntes.

Esse artigo não é peça isolada, mas representa certa tendência forte entre analistas liberais e conservadores do mundo inteiro. Tal tendência consiste em recusar a tese da ascensão mundial da extrema-direita como movimento catastrófico global de consolidação autoritária e de esgotamento terminal das ilusões da democracia liberal.

Vimos algo semelhante há pouco quando comentaristas políticos tentavam explicar que um partido como o francês Renovação Nacional, com seu racismo e xenofobia orgânicos, seus vínculos com o passado colaboracionista e colonial francês, seu aparato policial pronto para atirar contra tudo o que se assemelhe a um árabe, não era afinal problema assim tão grande e sequer deveria o partido ser chamados de “extrema-direita”.

Posições como essas não são apenas equivocadas. Não há catástrofe política que não tenha sido minimizada pelos que, em momento de crises estruturais, se apresentam como “antidogmáticos”, “equilibrados” e “avessos a palavras de ordem”. Diria, na verdade, que esse pretenso “equilíbrio” é peça fundamental do problema e de sua extensão.

Pois aos que pregam a normalização da extrema-direita eu diria que essa nunca teria força tão grande atualmente se não estivesse há muito normalizada. Não pelos eleitores, mas pelos políticos e formadores de opinião liberais. Há aliança objetiva entre os 2 grupos.

As políticas anti-imigração precisam ser inicialmente implementadas pelo “centro democrático” para que a extrema-direita cresça. A paranoia securitária precisa estar cotidianamente na boca dos analistas políticos “liberais” para que a extrema-direita conquiste eleitores e eleitoras.

Idem para a equalização entre militantes de movimentos sociais e tropas de bolsonaristas, trumpistas e afins. Ou seja, quando a extrema-direita enfim sobe ao poder normalmente precisa apenas chutar uma porta podre. A normalização real já tinha definido a agenda do debate político.

Contra essa tendência, eu diria que se espera da classe intelectual ao menos a capacidade de chamar de gato um gato. Insistir, por exemplo, que discurso marcado pelo culto à violência, pela indiferença em relação a grupos mais vulneráveis, pela concepção paranoica de fronteiras e identidade, pelo anticomunismo congênito, pela transferência de poder à figura, ao mesmo tempo, autoritária e caricata, tem nome analítico preciso, a saber, “fascismo”, é forma de sensibilizar a sociedade para os riscos e tendências reais que enfrenta atualmente.

Lembrar disso em país como o Brasil, que conheceu nos anos 1930 um dos maiores partidos fascistas fora da Europa, que teve 2 militares integralistas na junta militar de 1969, que teve presidente que há alguns anos assinava cartas à Nação com o lema “Deus, pátria, família”, é sinal de honestidade intelectual mínima.

A universidade brasileira já tem responsabilidade enorme em ter tratado o fascismo estrutural em nossa sociedade com zombarias até vir governo marcado por genocídios indígenas, massacres espetacularizados em favelas e 700 mil mortos na pandemia em nome da preservação das dinâmicas de acumulação capitalista.

Recusar a normalização da extrema-direita não significa ignorar os sofrimentos reais de seus eleitores, a precarização crônica da situação social dos que a apoiam. Muitos menos significa impor discursos morais no lugar de decisões políticas.

Significa não compor de forma alguma com as soluções da extrema direita, ter a capacidade de recusar de forma absoluta sua maneira de definir o debate. Significa tensionar a sociedade com visão alternativa de transformação e ruptura. Mas talvez seja exatamente isso que alguns mais temam.

*Professor titular de filosofia da FFLCH-USP. 

Publicado originalmente pela Folha. 

 

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