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Artigo: Abolições?, por Carlos Nascimento

 Por Carlos Nascimento*

“E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
E são quase todos pretos”

Na canção Haiti, Caetano Veloso e Gilberto Gil escancaram a brutalidade do racismo brasileiro ao retratar os mecanismos sociais que determinam quem é — ou deixa de ser — negro, conforme conveniências econômicas, políticas e sociais, muitas vezes exercidas por meio de violências sutis e naturalizadas. Essas violências, embora disfarçadas em gestos cotidianos e aparentemente inofensivos, revelam-se estruturantes de um sistema de exclusão.

A ironia presente na letra expõe, de maneira aguda, a hipocrisia de uma sociedade que se recusa a se reconhecer como mestiça, plural, desigual — insistindo em idealizar um modelo de identidade centrado no homem branco, hétero, adulto, europeu ou estadunidense, como símbolo de correção e sucesso. Aos demais — negros, indígenas, mulheres, pobres, idosos — restam, historicamente, os papéis da ignorância e da submissão.

O sociólogo Jessé Souza, em A Elite do Atraso: Do Escravismo à Lava Jato e Brasil dos Humilhados, aprofunda essa discussão ao demonstrar como, a partir do início do século XX, o chamado “racismo científico” vai sendo substituído por uma versão culturalista e mais sutil — mas igualmente perversa — do preconceito racial. Amparado por intelectuais como Sérgio Buarque de Holanda, esse discurso sustenta uma falsa ideia de democracia racial, mascarando a dominação das elites brancas, em sua maioria concentradas no Sul e Sudeste, que se enxergam como herdeiras diretas da Europa.

Essa visão molda nossas estruturas educacionais e culturais, perpetuando a desigualdade como algo natural. A presença de negros e mestiços em condições precárias de vida e trabalho é normalizada por discursos que, ao defenderem a meritocracia, culpabilizam o indivíduo por sua exclusão, ignorando séculos de marginalização histórica.

Casos como o da estudante negra bolsista, hostilizada no tradicional Colégio Mackenzie — instituição de elite frequentada majoritariamente por filhos da classe alta branca — ilustram com clareza como essas estruturas se mantêm e se reproduzem. Tal realidade se agrava em um cenário mundial marcado pelo crescimento de movimentos neonazistas e pela disseminação de discursos de ódio através de redes sociais sem regulação.

O 13 de maio, data oficial da Abolição da Escravatura, quando analisado com profundidade, revela-se não como um marco libertador, mas como o resultado de décadas de manobras políticas, com pouco ou nenhum compromisso com os direitos humanos. A sua efetiva consolidação enquanto conquista social ainda exige uma profunda revisão das ideias que estruturam a nação.

A abolição, para a maior parte da população negra e periférica, permanece uma promessa não cumprida. Ainda hoje, o cotidiano revela um país que violenta, exclui e silencia sob os mais diversos pretextos — sempre disfarçados de normalidade.

* Carlos Nascimento é diretor de Assuntos de Raça e Etnia do SEEB/VCR e bancário da CEF/Candeias.

 

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