Por Nabil Bonduki*.
Em meio à agenda neoliberal que está sendo promovida no Brasil, a revolta chilena e a paralisia do governo federal frente ao nosso maior desastre ambiental surgem como alertas potentes sobre a necessidade de se repensar as reformas que estão sendo implementadas no país.
Se ainda existe lucidez e capacidade de ouvir o outro, é o momento de frear a polarização contraproducente que se instaurou nos últimos anos para refletir sobre qual o modelo de Estado que queremos adotar, rompendo o dogmatismo e buscando caminhos alternativos.
É inegável a ineficiência e corporativismo do Estado brasileiro. Mas esse entendimento não pode levar à conclusão de que o único caminho a seguir é a doutrina neoliberal, baseada na desregulamentação, privatizações, diminuição do papel do Estado e revogação de direitos.
No ambiente empresarial, na mídia e em setores da sociedade tornou-se um mantra a ideia de que o crescimento econômico exige a redução do Estado, privatização e concessão de serviços públicos e a flexibilização da legislação ambiental, trabalhista e urbana. Prevalece ainda a concepção de que os indivíduos devem concorrer e disputar as melhores oportunidades, gerando os vencedores, privilegiados que podem pagar pelos bens e serviços, e os perdedores, que ficam excluídos porque são incapazes.
O predomínio dessa concepção cruel tem gerado a privação de serviços públicos para a população de baixa renda e um aumento exacerbado da desigualdade em todo o mundo, como mostrou, entre outros, a série de reportagens de Fernando Canzian e Fernanda Mena, publicada pela Folha em agosto.
A explosão chilena é a expressão mais recente dessa panela de pressão social que o modelo gera. O país ocupa a 3º posição em concentração de renda, com o 1% mais rico se apropriando de 24% da riqueza, somente superado pelo Brasil, com 28% e pelo Qatar, com 29%.
Naquele país, a concessão, a privatização e a financeirização da previdência e dos serviços públicos (educação, saúde, saneamento e transporte), a desregulamentação do trabalho e a supressão de direitos foram adotados na ditadura de Pinochet (1973-1990) como um laboratório do neoliberalismo na América Latina. Como essa política foi pouco atenuada com a democratização e o Estado não promoveu políticas sociais suficientes para contrabalançar a desigualdade, apesar do alto PIB do país, a panela estourou.
No Brasil, o irresponsável desmonte do Estado, sem debate público, planejamento e consistência, iniciado por Temer e brutalmente aprofundado por Bolsonaro, com a supressão de órgãos públicos, indicação de pessoas despreparadas para funções técnicas e desqualificação das instituições, já mostra resultados trágicos, visíveis a olho nu.
Independentemente das causas do vazamento criminoso de óleo no litoral, o Estado nacional deveria estar preparado para enfrentar e minimizar seus impactos. Mas em abril de 2019, foi extinto o Comitê Executivo e o Comitê de Suporte do Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas (PNC).
O PNC estabelecia os procedimentos para enfrentar os incidentes com óleo e organizava a ação dos órgãos públicos para reduzir danos ambientais e problemas de saúde da população. Ao jogar fora esse trabalho, o governo perdeu a capacidade de reagir ao desastre. Levou 41 dias desde o aparecimento das primeiras manchas para tomar alguma iniciativa. Voluntários, sem preparo, orientação e equipamentos adequados, tentaram colaborar, prejudicando a própria saúde.
O desmonte e desqualificação do Ministério do Meio Ambiente, do Ibama e do ICMBio, crime que deveria levar o presidente e o ministro Ricardo Sales aos tribunais, é a mais grave consequência dessa visão equivocada com que se governa o país.
A mesma concepção está presente em São Paulo, onde João Doria e Bruno Covas, talvez para se mostrarem como os campeões do neoliberalismo, promovem uma onda de concessões e privatizações como se essa fosse, por princípio, uma política a ser perseguida. Daí decorre, como mostrei na coluna, ideias esdrúxulas, como conceder o Parque do Ibirapuera a uma empresa privada por 35 anos ou vender terrenos públicos onde funcionam escolas e equipamentos sociais.
Reformar o Estado é necessário. Mas os exemplos recentes mostram que o modelo neoliberal, com a concepção de Estado mínimo, aponta para um mundo ainda mais desigual, injusto e sem capacidade de enfrentar os grandes desafios sociais, ambientais, urbanos e econômicos do século 21.
*Nabil Bonduki é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.