TABOCAS
Por Carlos Nascimento*
Taboca era seu nome, seu apelido. De pele queimada, enrugada de sol, cabelos brancos, barba rala, poucos dentes e muitos sorrisos, aquele senhor maltrapilho surgia do nada — via de regra no fim da tarde — semana sim, semana não.
Trazia pendurado nas costas um recipiente feito de latões de manteiga soldados e, dentro dele, o petisco que lhe batizava a alcunha: tabocas quentinhas e deliciosas. Para os de fora — ou que têm pouca leitura das escrituras sagradas — cabe explicar que taboca também leva o nome de biju noutras paragens do país e, assim como os biscoitos de vento, é vendida por ambulantes nas praias e sinais de trânsito do Rio de Janeiro.
Mas comer tabocas não era o bastante. Como toda magia de infância, aquela ocasião envolvia um outro ritual, o da “osadia”, e nele, invariavelmente pedíamos a Taboca que contasse de novo — e de novo — sua famosa história do bolso furado, que dizia oferecer para que as mulheres bonitas pegassem o troco, uma vez que estava com as mãos ocupadas. Ali, em vez de dinheiro, as donzelas davam com a mão em seu pinto. Ocasião de repetidas gargalhadas de todos. Naquela idade, sabíamos lá para que isso servia. Mas era “osadia”, e isso era sempre engraçado.
Por conta dessas conversas, em nosso imaginário ele era — com total certeza — o tarado. Essa mítica figura que se esgueirava pelos becos e ruas escuras das cidades do interior do país, e em Tabocas isso não era diferente. O tarado estava sempre à espreita, pronto a atacar as mocinhas que desavisadamente caminhassem a esmo pelas esquinas desertas.
Tínhamos então a convicção — e até um certo orgulho — de sermos amigos do tarado. Um tipo de herói-bandido, que escondia sua identidade secreta sob a figura de um velho decrépito, que se sustentava às custas da venda de guloseimas. Disfarce mais que perfeito. Imagina só, romantizávamos a figura do tarado — um violador. Coisas de criança, de infância de rua.
Outro personagem deste pequeno universo era Seu Raimundo, o vigia. Preto retinto de fala amável e simpatia inquestionável. Como regra da profissão, o vigia trabalhava quase como um indigente, toda a noite sentado, protegido por um cobertor de mendigo e um apito. A arma velha que lhe era confiada tinha quase tanta chance de funcionar quanto a genitália do velho Taboca.
O vigia atravessava noites solitárias, alentadas por um rádio de pilhas e curtas caminhadas pela rua. Os sibilos de seus sopros eram ouvidos ao longo da madrugada, e serviam tanto para espantar possíveis meliantes, como para comunicar a seus patrões que estava trabalhando. Não se sabia ao certo onde comia ou fazia suas necessidades. Sua profissão era como um contrato de risco, que se encerrava quando ocorria algum sinistro de roubo, ou quando era denunciado por estar dormindo em serviço.
Mas Seu Raimundo — o mais longevo deles — era fascinante, e avançávamos noite adentro ouvindo seus contos, da guerra em que não lutou, da bala encravada no joelho, do amigo que virava lobisomem, de verdade. Sempre havia alguém que conhecia um lobisomem, e o vigia certamente conhecia um.
Ali por perto, encostado no muro, um par de sandálias japonesas, ou de pedras, definia as dimensões do gol. E para os que são doutros lugares — ou de pouca fé — sandálias japonesas também podem ser entendidas como chinelos, sandálias de dedo ou Havaianas, “as que não cheiram, não deformam nem soltam as tiras”. Mentira descarada anunciada por Chico Anísio nas campanhas da TV. Não aguentavam jogar um baba sequer, e normalmente era bola para um lado, sandália para o outro, tiras para bem longe. Depois era remendar com prego.
Do outro extremo da “quadra”, trapezoide e de piso irregular, os mesmos apetrechos eram colocados de frente às rodas de um Ford Landau cor de vinho. Carro de boa lataria, resistente a todo tipo de bolada. Não admitíamos nunca, mas as dimensões do gol era sempre a distância do entre eixos do Landau. Se ele estivesse estacionado mais para cima, ali ficava o gol; se mais para baixo, lá estava a meta também. Púnhamos os chinelos à frente de suas calotas quase por desencargo de consciência, ou álibi legal.
Aquele era um veículo e tanto. Símbolo de status, imenso como as banheiras que víamos nos filmes americanos, tinha uma personalidade forte. Obrigava seu dono a levá-lo consigo ao bar sempre que este ia tomar uma cerveja. O Landau bebia.
Das regras: se a bola batesse no muro — fora dos limites das pedras — era fora. Se entrasse na garagem coberta, era fora. Se batesse nos paralamas do Landau, era fora. Se descesse rua abaixo, aí não era fora não, e ia todo mundo correndo atrás da fujona para tentar trazê-la de volta na base da canelada.
Se fosse chutada para cima — para além do alcance do goleiro — era alta. O goleiro gritava “Alta!” e pronto, o gol era invalidado. Afinal, assim como as traves, o travessão era imaginário, e a palavra do goleiro tinha fé pública.
As brigas também estavam na pauta. Normalmente por alguma falta não reconhecida, saíam murros, saíam chutes e saíam irmãos se xingando de “filho da puta”. E machucados, joelhos ralados e promessas de vingança. Por vezes isso acabava com o jogo. Por vezes um lustre quebrado também. Sumiam todos antes mesmo que os estilhaços de vidro tocassem o chão.
De resto, seguíamos o Regulamento Internacional do Futebol de Rua. O goleiro era um grosso que não sabia driblar, o dono da bola era o imperador do jogo, tinha os cafés com leite, time de camisa e sem camisa, podia Conga, podia Kichute, podia descalço, de sandália japonesa, de “percata”, podia menina, podia a porra toda.
Bastava uma vitória da Seleção ou do Flamengo para sairmos excitados a jogar e reproduzir bordões dos locutores da Globo. Era só festa.
Para matar a sede, água da torneira e, ao final, celebrava-se com o juju de Marlene. Pagava quem tivesse dinheiro no dia, ou se pendurava a conta para o dia seguinte. E para os que leem de fora — ou têm pouco catecismo — juju também é conhecido, Brasil afora, como chopp, chup-chup, geladinho, dindim ou sacolé, e tinha de morango, uva e groselha, e só. Nossa alegria não requeria mais que isso.
Tinha também as brincadeiras de “revólver”. Animados pelos filmes e séries de TV, todos iam buscar suas armas de espoleta, quase sempre descarregadas, haja vista que as “balas” eram caras, e não resistiam a uma única tarde de aventuras. Então os tiros saíam na base do gogó. Era “pá” e era “pou”, mas era mais “pá” mesmo.
Não havia uma divisão exata entre bandidos e mocinhos, e ninguém morria pois, mesmo de mentirinha, não se admitia receber um tiro. O alvejado gritava sempre que “foi de raspão” e, assim como no recurso do goleiro, mantinha-se vivo e atirando, ainda que encenasse por breves minutos, segurar o ferimento imaginário com a mão. Também, não era interessante que alguém morresse, senão acabava a coisa.
Era um bairro em construção. Inúmeras mansões do cacau ocupavam quarteirões quase inteiros daquele morro e ali, bem no meio, ficavam os prédios onde morávamos. Filhos de funcionários públicos e profissionais liberais, representávamos uma classe média que ousava invadir aquele espaço de luxos. Para os que olhavam do pé do cerro, éramos ricos, para os que nos viam de cima dele… nem tanto.
Vivíamos entre o fascínio pelos Mercedes-Benz dos Binot — além de suas loiras filhas, é claro — e as limitações assalariadas de nossos pais. Entre as excentricidades dos Vogel e a curiosidade sobre a doutrina Baháʼí. As missas aos domingos? Pura desculpa para azaração. Por ali de tudo passou um pouco e um pouco de tudo aprendemos. Infância rica.
Cada família com suas peculiaridades. Na nossa vaga de garagem, por exemplo, meu pai mantinha três Brasílias: a 74, de estofamento vermelho, a 75 e a 78. Duas estavam sempre rodando, e uma parada na Stander Volks, regulando os carburadores ou fazendo chaparia. Saía uma, entrava outra. Um detalhe, nessa época os carros já deixavam a concessionária com os cintos de segurança subtraídos, um serviço prestado como cortesia a seus compradores. O politicamente correto ainda estava longe de ser inventado.
Havia também a aparição das cobras e aranhas-caranguejeiras, episódios em que mobilizavam a todos no caçar dos bichos que, ora expulsos de seu habitat pelo desmatamento, cruzavam ingenuamente nossos caminhos. Mobilizávamos nossos pais, o vigia, ou qualquer adulto que estivesse por perto para se juntar à heroica empreitada. Às aranhas, álcool e fogo; às cobras, pauladas. Uma euforia.
O bairro — e não somente ele — era nosso playground. Atenção! Não confundir com “pregau”, que era aquele pátio coberto, com piso de mármore, que ficava no acesso às portarias dos edifícios. Neste rolavam corridas de patins e skates, além de jogos ilegais de bola.
Nossas aventuras subiam e desciam ladeiras, avançavam no tempo e no mato, se limitando apenas ao grito, quase desesperado, das mães, já tarde da noite, a nos convocar para o banho incerto e para a cama.
As crianças pobres, as celebrações da Copa do Mundo, os passeios de caminhonete, as bombas de São João, as festinhas na piscina, os libaneses, os irmãos magrelas, os cachorros, as brigas de rua, as puladas de muro, as invasões das construções, as quedas de bicicleta, pernas e braços quebrados. Um universo de histórias ainda caberia neste texto. Uma infinidade de lembranças e aprendizados que, por vezes adormecidas, habitam nosso ser, se recompondo como flashbacks, à medida que a vida traz novas experiências e desafios.
Nem tudo verdade. No documentário Chico – Artista Brasileiro, o sambista Chico Buarque elucida sua literatura de memórias semificcionais, afirmando que toda contação de histórias carrega consigo uma porção de mentiras. Não propriamente por malícia ou pelo desejo de distorção dos fatos, mas como fruto de uma nostalgia que nos leva a fantasiar o passado, geralmente marcado pelos momentos mais agradáveis, ou na idealização de como poderiam ter ocorrido.
Naturalmente, estes relatos não escapam a esta possibilidade. Ademais, escrevo à luz de minhas vivências, certamente percebidas de formas diferentes pelos que comigo partilharam desta infância grapiúna. Tão igual e tão diferente da de tantas outras milhares de crianças país afora.
Mas, ao final, importa registrar como essa nossa Tabocas — de figuras típicas, da pobreza e da riqueza do cacau — teceu em nós raízes importantes e essenciais que nos deram liga, e sedimentaram a caminhada de nossas vidas até este lugar a que chamamos de maturidade: íntegra, racional, tola e insegura, como a de qualquer adulto normal e imperfeito deste mundo.
* Carlos Nascimento é diretor de Assuntos de Raça e Etnia do SEEB/VCR e bancário da CEF/Candeias.
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