Palestinos distantes uns dos outros lutaram imensamente para manter um projeto nacional com objetivos claros. Agora, lutando juntos por toda o território da histórica Palestina, as partes desintegradas de seu corpo estão se reunindo mais uma vez.
Sejamos honestos: o mundo é obcecado pela palavra “Intifada”. Enquanto tudo queima ao redor dos palestinos, os especialistas, analistas políticos e jornalistas de todo o planeta estão ocupados discutindo se a atual onda de levantes poderia ser considerada a Terceira Intifada.
Assim cunhada em 1987, a Intifada foi a popular e espontânea revolta de palestinos que saíram às ruas exigindo dignidade e liberdade na ocupação israelense. A Primeira Intifada se encerrou com a assinatura do Acordo de Oslo, em frente à Casa Branca, em 1994, enquanto a Segunda (mais militante) Intifada começou em 2000, depois de Ariel Sharon ter feito uma visita altamente provocativa ao al-Haram al-Sharif (a mesquita de Aqsa). As duas revoltas surgiram na forma de massivos protestos que duraram anos.
Eu vivi a Primeira Intifada com o olhar de um jovem estudante, quando o lançamento de pedras e passeatas eram suficientes para forçar Israel a negociar com aqueles que eram considerados uma organização terrorista (Organização Pela Libertação da Palestina – OLP) e aceitos como única representante do Povo Palestino. Minha memória da Segunda Intifada é mais brutal e sangrenta: o uso de armas pesadas era o novo normal, com ataques israelenses fragmentando com frequência cidades e bairros, causando devastação e humilhações como nunca antes.
Enquanto escrevo estas linhas, minha gente está realizando outros protestos em massa. Apesar de ter começado em Jerusalém, rapidamente se espalhou por todo o território da história Palestina – desde o Deserto de Negev até as montanhas de Haifa. Mas como a situação se acirrou de tal maneira nas últimas quatro semanas?
Anos de ocupação militar israelense e a construção acelerada de assentamentos fragmentaram a política dos palestinos em diferentes regiões. Apesar de termos mantido nossa identidade cultural forte e unida, a realidade nas ocupações nos obriga à sujeição de diversas normas burocráticas e distintas realidades administrativas.
Apesar de os palestinos que se encontram no Estado de Israel serem considerados cidadãos, aqueles que se encontram na Cisjordânia (como a família da minha mãe) são efetivamente governados pelo Exército Israelense e pela jurisdição das cortes militares, enquanto aqueles que moram em Gaza são ainda mais cercados e marginalizados. Enquanto isso, na condição de Palestino de Jerusalém, eu sou um mero “residente” da cidade (não um cidadão do Estado), com direitos civis limitados, sem nenhum direito político ou de voto.
Palestinos desconectados uns dos outros têm lutado imensamente para manter um projeto nacional, com objetivos claros. Mas após anos de exploração e aumento do racismo sob governos nacionalistas de direita, nesta semana os Palestinos estão relembrando seu espírito de resistência. Lutando juntos em diferentes pontos de confronto, essas partes desintegradas estão juntas novamente.
O primeiro protesto ocorreu no Portão de Damasco, em Jerusalém: a demanda era para a Polícia Israelense remover as barreiras de metal que fechavam o acesso da Praça ao Portão, considerado o pulmão da vida social dos Palestinos na Velha Cidade. Embora inicialmente a Polícia tenha se recusado, depois de 13 dias de pacíficos protestos nós forçamos Israel a reabrir a Praça durante os festivos dias do Ramadã. Neste caso, os protestantes eram jovens e relativamente apolíticos demandando acesso ao espaço público de Jerusalém.
Ao mesmo tempo, a centenas de metros ao Norte da Cidade Antiga, 28 famílias na vizinhança de Sheikh Jarrah receberam ordens de despejo para saírem de locais nos quais estavam desde 1956. Uma organização de colonos judeus articulou para convencer diversos juízes israelenses (um deles era um colono) de que a terra na qual essas casas estão construídas seria, na verdade, propriedade de judeus desde 1875 (73 anos da criação do Estado de Israel).
Muitos viram nessa decisão um claro exemplo de como as cortes israelenses fazem parte do apartheid que manipula a lei para criar novos fatos. Estimulados por relatórios de abusos de Direitos Humanos por parte de Israel, centenas e depois milhares de Palestinos surgiram para se solidarizar com as famílias afetadas, a fim de reverter essa injustiça.
Durante o sagrado mês do Ramadã, dezenas de milhares de Palestinos acessam o Al-Haram Al-Sharif todas as noites, mais ainda às sextas-feiras. Na 27ª noite do Ramadã (a mais sagrada de todas), milhares de policiais e o Exército se postaram desnecessariamente na Antiga Cidade, ampliando a atmosfera que já se encontrava tensa. Era só questão de tempo para que milhares de militares invadissem o Santuário mais sagrado no dia mais sagrado do ano.
Com suas botas, armas e agressão, o Exército feriu mais de 150 pessoas, causando danos a edifícios sagrados, destruindo barbaramente antigos vitrais e portas de madeira. O regime de terror de Israel havia cruzado uma linha religiosa, violando um santuário e causando fúria e revolta não apenas nos Palestinos, mas em muçulmanos ao redor de todo o planeta.
Começamos a questionar se o crescente tumulto ainda poderia ser contido, quando um colono israelense (diante dos olhos da Polícia) atirou e matou um jovem protestante durante um ato pacífico em Lod, um local sob o controle de Israel que vem sofrendo com problemas sociais como crimes, drogas e negligência do governo.
No dia seguinte, dezenas de regiões que fazem fronteira com Israel organizaram marchas pedindo por responsabilidade policial e tratamento igualitário. Infelizmente e sem maiores surpresas, a polícia respondeu com agressões, enquanto nacionalistas de direita gritavam “morte aos árabes” e clamavam pelo linchamento de Palestinos.
Quase dois milhões de Palestinos dentro do Estado de Israel (cerca de 20% dos cidadãos) ficaram finalmente diante da realidade de marginalização. A negação acabou e a comunidade (que se encontra abaixo dos judeus israelenses na hierarquia racial do Estado) está voltando a valorizar sua identidade nacional, alinhando sua luta por qualidade de vida e democracia à dos Palestinos em Jerusalém e na Cisjordânia.
Enquanto isso, em Gaza, Israel está implementando sua política de “cortar a grama” (na prática, ataques sangrentos na Faixa repetidos ano a ano para mantê-la pobre e pouco desenvolvida). Desde a semana passada, os ataques já causaram mais de 120 mortes.
Ao passo em que Israel ameaça aumentar ainda mais a invasão de terras (com pouca resistência local e sem proteção internacional), moradores de Gaza sitiados são deixados para sangrarem isolados às margens do Mediterrâneo.
Finalmente, Palestinos na histórica Palestina estão fechando o círculo. Considerar esse movimento como uma Terceira Intifada não é o que importa. O que é único em relação ao atual movimento é que os Palestinos estão mais uma vez em uníssono gritando por liberdade, dignidade e igualdade.
O ativismo local está se unindo ao ativismo nacional. Os seculares entre nós, que trabalham entre nós por meio de mecanismos legais do Direito Internacional, estão se unindo aos ativistas religiosos, que querem proteger suas cidades sagradas. Apesar de afetados de modos distintos, a Ocupação nos últimos tempos afetou a todos eles (ninguém mais está a salvo do racismo e das agressões de Israel).
Para Israel, o despertar da resistência Palestina é uma ameaça; para nós, este momento representa nossa esperança de liberdade para todos. Somente um caminho pode salvar todos nós: acabar com a Ocupação, encerrar o apartheid e pôr fim à opressão.
Por Mahmoud Muna, líder cultural palestino
Tradução: Fernando Damasceno
Fonte: CTB, com texto originalmente publicado em Mondoweiss.