Na semana em que protestos motivados pela morte de um homem negro, George Floyd, por um policial branco nos Estados Unidos se espalharam também pelas redes sociais brasileiras, o filho negro de uma empregada doméstica, Miguel Otávio, morreu ao cair de um prédio de luxo no Recife, enquanto estava aos cuidados da patroa, branca.
Para a historiadora Luciana da Cruz Brito, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e especialista em história da escravidão, abolição e pós-abolição no Brasil e nos EUA, a morte de Miguel resume o debate sobre as diferenças entre a questão racial nos dois países.
“A nossa supremacia branca é assim. Não tivemos leis segregacionistas, como nos Estados Unidos, mas temos o mesmo princípio de que algumas pessoas são mais humanas do que outras”, disse à BBC News Brasil, em entrevista por telefone.
O garoto de 5 anos tinha acompanhado a mãe, Mirtes Renata de Souza, ao trabalho no apartamento dos patrões, já que as creches em Recife estão fechadas por causa da pandemia de covid-19. Mirtes teve de descer para passear com o cachorro da patroa, e deixou o filho aos cuidados desta. O menino começou a chorar enquanto a patroa fazia as unhas com uma manicure e entrou no elevador do prédio, no 5º andar, para buscar a mãe.
Imagens do circuito de câmeras de segurança, divulgadas pela Polícia Civil, mostram o momento em que a patroa, identificada por Mirtes em entrevista à TV Globo como Sari Corte Real, fala com o menino no elevador e parece apertar um dos botões. De acordo com a investigação, o menino desceu no 9º andar, escalou uma grade na área dos aparelhos de ar-condicionado e caiu.
De acordo com a polícia, a patroa foi presa em flagrante, pagou uma fiança de R$ 20 mil e deve responder em liberdade por homicídio culposo, quando não há intenção de matar.
O assunto se tornou o mais comentado do Twitter no Brasil na última quinta-feira, com mais de 300 mil publicações.
Celebridades e políticos, como a ex-senadora Marina Silva e a vice-governadora de Pernambuco, Luciana Santos, se manifestaram sobre a morte do garoto e afirmaram que o caso mostra o racismo estrutural e o desprezo pelas vidas negras no país.
Isso não significa, no entanto, que o racismo no Brasil ganhará o centro do debate, segundo Luciana.
“Ainda precisamos ser pautados pelos Estados Unidos porque ainda queremos acreditar no mito de que vivemos numa democracia racial. É mais fácil olhar para lá e dizer: ‘graças a Deus aqui não é assim’. Mas aqui é assim, sim.”
Veja a seguir os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil – O que a morte de Miguel Otávio revela, em sua opinião, sobre o racismo no Brasil?
Luciana Brito – É trágico que uma criança tenha que morrer para mostrar isso, mas é assim que a ideia de supremacia branca funciona no Brasil. Eis a principal diferença entre a questão racial aqui e nos Estados Unidos.
Nem posso dizer que não temos aqueles supremacistas brancos clássicos, porque agora vemos aqui passeatas inspiradas na Ku Klux Klan, por exemplo.
Nós tivemos teses racialistas no Brasil, no início do século 20, dizendo que brancos seriam superiores a negros. Mas depois de um certo momento, essa ideia começou a se enraizar nos costumes.
Enquanto a ideia de supremacia branca nos Estados Unidos se transformava em leis, nos anos 1940, 1950 e 1960, aqui ela já estava profundamente nos costumes da população brasileira. Esta é a nossa supremacia branca.
Mesmo que não tenhamos tido as mesmas leis segregacionistas que os EUA, temos o mesmo princípio de que algumas pessoas são mais humanas e mais cidadãs do que outras.
BBC News Brasil – Que elementos do caso, na sua opinião, o tornam tão emblemático desse princípio?
Luciana Brito – Desde o início da pandemia estamos falando das trabalhadoras domésticas. Elas foram as primeiras a ser infectadas sem sair do país. Foram as primeiras a aparecer no fundo das lives (transmissões ao vivo) das celebridades. Então essa mulher, Mirtes Renata, a mãe de Miguel, foi infectada, não tinha onde deixar o filho e o levou para o local de trabalho, que era um local de infecção — já que os patrões dela estavam infectados. Esse é o primeiro ponto.
Depois temos a cena da patroa em casa rodeada de serviçais. Eu chamo isso de “delírios escravistas coloniais da sociedade brasileira”. É o saudosismo do Brasil escravocrata colonial. É o sentimento que faz uma pessoa se rodear de serviçais num contexto de pandemia e de isolamento social. Ainda que esses serviçais, a doméstica, a manicure e o menino, estivessem correndo risco de vida.
Também há o fato de que a mãe da criança teve que sair para levar o cachorro para defecar, coisa que qualquer pessoa poderia fazer, inclusive a dona do cachorro. Ela não abre mão de fazer as unhas para que o cachorro vá defecar. O cachorro tem um pouco da extensão da humanidade da dona. Ele tem uma atenção mais qualificada, que é a da trabalhadora doméstica.
O menino fica (em casa). Ele incomoda a patroa porque chora pela mãe, e ela o deixa no elevador sozinho. Eu vi a cena do elevador (no vídeo das câmeras de segurança exibido pela Polícia Civil). A forma como a patroa se dirige ao menino de 5 anos é como se estivesse falando a um adulto impertinente.
Se a gente quer falar nos Estados Unidos, isso me lembrou Tamir Rice, que morreu em 2014. Ele estava em um parque brincando com uma arma de brinquedo, uma pessoa viu da janela e ligou para a polícia. Disse para a polícia que ele aparentava ter 20 anos. Ele tinha 12. O carro da polícia chegou e ainda estava em movimento quando o policial atirou e matou Tamir. Crianças negras, especialmente meninos, não têm infância.
A patroa de Mirtes fala com um menino de 5 anos sem cuidado. Essa é a idade do meu filho. Ele não fica em momento algum fora de nossas vistas. Meu filho nunca andou sozinho no elevador do meu prédio, nem nos meus momentos de maior cansaço e preguiça.
A mulher bota o menino no elevador, aperta o botão, como dá para ver no vídeo, e aparentemente volta e continua a fazer as unhas. Não conseguimos ter uma ideia exata de tempo pela entrevista da mãe na imprensa, mas entendi que quando a mãe volta do passeio com o cachorro, ela fica sabendo pelo zelador que alguém caiu, e descobre o filho morto no chão.
Ou seja, a patroa colocou o menino no elevador e sequer ficou vigiando pra saber se ele tinha voltado ou não. Ela não sabia que ele tinha caído. Isso revela um desprezo por um ser humano. E é aí que eu vejo uma noção de supremacia branca. Não precisa vestir roupa da Ku Klux Klan.
BBC News Brasil – O Brasil parece ter herdado a comoção com a morte de George Floyd e os protestos antirracismo ocorrendo nos Estados Unidos na última semana. E houve quem dissesse que as mortes de pessoas negras em ações policiais aqui, como o caso recente de João Pedro, de 14 anos, não são alvo de protestos tão eloquentes. Por outro lado, muitos ativistas do movimento negro apontaram que manifestações acontecem, sim, especialmente nas comunidades mais atingidas pela violência policial. Por que esses protestos nacionais parecem menos visíveis?
Luciana Brito – Um exemplo disso acabou de acontecer. Eu estava vendo o jornal local e soube que ocorreu um ato por conta de uma ação policial no Bairro da Paz, em Salvador (Nota da redação: Dois jovens negros foram mortos em tiroteio). A comunidade fechou a Av. Paralela, tocou fogo em pneus e em um ônibus. Nós, as pessoas negras que são militantes, não fomos para lá. Não recebi nenhum informe sobre mobilização. E o comandante da polícia disse no jornal que aquelas eram pessoas influenciadas por traficantes de drogas, que mandaram que elas se manifestassem.
Quando ele diz isso, está fazendo duas coisas: primeiro ele conta com esse mito de que as leis não têm corte racial, de que as ações policiais em que morrem negros são casos isolados — embora só negros morram dessa forma. E em segundo lugar, ele também desacredita a capacidade de articulação política daquelas comunidades.
A gente vê que nos Estados Unidos os policiais não negam em momento algum que há uma demanda política nos protestos. Eles podem até discordar, mas sabem que é um movimento político e que há uma questão para ser discutida.
Não temos uma polícia — nas Américas de um modo geral — que respeite as pessoas negras, nem mesmo a sua capacidade política de se organizar para expressar sua revolta através de uma manifestação, por menor que seja.
No Brasil não temos uma imprensa que nos apoie, que esteja realmente comprometida com a luta antirracista. Isso já vemos com mais frequência nos Estados Unidos.
Também não há uma compreensão de toda a população negra brasileira de que aquilo ali poderia acontecer com qualquer pessoa da nossa família, ou com nós mesmos, também por uma cobertura jornalística desses eventos que criminaliza aquelas pessoas.
Temos programas jornalísticos sensacionalistas que mostram todos os dias jovens negros sendo presos, com apresentadores dizendo: “são marginais, é isso mesmo”. Não há um olhar mais sofisticado de todo o jornalismo sobre a maneira como são feitas essas prisões ou chacinas.
E nós também não temos um apoio da comunidade branca que se envolva naquilo como se fosse problema dela. E não falo dos brancos conservadores, porque já sabemos qual é a deles. Falo dentro do próprio coletivo que é de esquerda, que tem um olhar humanitário sobre a sociedade, mas que diz “aquilo ali é problema do pessoal do movimento negro, eu não vou lá”.
E tudo isso está ligado, é claro, à nossa história racial.
BBC News Brasil – De que maneira?
Luciana Brito – A polícia é violenta, tanto lá nos EUA quanto aqui. Mas nos Estados Unidos — e eu atribuo isso ao movimento pelos direitos civis, nos anos 1960 — as lideranças negras conseguiram promover uma educação racial nas comunidades negra e branca muito cedo. Isso porque lá o racismo era uma política de Estado escancarada.
Depois da abolição da escravidão, houve um período chamado de reconstrução nacional, quando se incentivou que negros fossem para a escola, se candidatassem a cargos públicos, houve fiscalização para que as pessoas não fossem escravizadas.
Mas chegou um momento em que cada cidade e Estado sulista começou a implantar suas próprias leis segregacionistas, que é o que conhecemos como as Leis de Jim Crow. O governo federal fez vistas grossas enquanto os Estados do sul passaram a promover o que eu chamo de terrorismo às populações negras no sul. Linchamento, enforcamentos, cenas que hoje conhecemos de fotografias e de filmes, que mostram churrascos de gente.
BBC News Brasil – E no Brasil?
Luciana Brito – Depois que os EUA aprovaram a abolição, em 1865, os jornais de lá passaram a cobrir quase que diariamente a situação no Brasil, que tinha recebido muito mais negros traficados. Eram 400 mil nos Estados Unidos e quase cinco milhões aqui. Chamava atenção que o Brasil conseguisse arrastar a escravidão por tanto tempo.
Mas os diplomatas e políticos brasileiros se justificavam dizendo que aqui a escravidão era branda, que não havia conflito de cor. Outra justificativa comum era: “vamos chegar na abolição, mas estamos fazendo isso de maneira pacífica, porque aqui não tem guerra”.
O Brasil acabou com a escravidão e entrou no pós-abolição com esse mito de “não temos conflito racial como nos Estados Unidos”. E outros mitos como “o negro aqui não trabalha, é preguiçoso”. Aí foram criminalizadas as atividades negras pela lei da vadiagem, do Código Penal de 1942. Não tinha nada lá falando sobre negro, mas a capoeira era crime, o candomblé era crime. Ficar na rua, algo comum para as pessoas negras libertas que não tinham emprego ou tinham empregos informais, era crime.
Então, depois da abolição, o Brasil não criou leis claramente segregacionistas, mas encontrou formas igualmente perversas de lidar com a população negra, que transformaram o racismo em algo não dito.
A educação para sobreviver numa sociedade racista a partir do não dito deixou mais difícil para pessoas negras se organizarem em torno de um inimigo visível.
Raramente uma pessoa negra no Brasil tentou entrar num restaurante e ouviu “preto não entra aqui”. Nós sabemos, e vivenciamos isso, que aqui você ouve “as mesas estão todas ocupadas”. Você entra em uma loja e não é expulso, mas a vendedora lhe ignora. Quem não lhe ignora é o segurança.
Nós não tivemos uma formação, desde a infância, na qual somos treinadas e treinados para perceber o racismo no momento em que ele está acontecendo, sem ser nomeado.
Isso faz com que vejamos coisas como o avô de Ágatha (Félix, de 8 anos, morta por tiros de fuzil de um policial militar em 2019) dizendo a jornalistas na porta do IML (Instituto Médico Legal): “Ela fazia inglês, ela fazia balé, ela era boa aluna”.
Porque ele acredita que a família fez tudo certo. Nesse pacto civilizatório brasileiro, nessa ideia da família de bem, é preciso dizer “ela não merecia”, como se fosse uma questão de merecimento.
Somos treinados, inclusive as pessoas negras, para que, quando vemos corpos negros na televisão sendo arrastados pela delegacia ou as chacinas nas comunidades, pensemos: “ali era marginal, e marginal tem que morrer”.
O Brasil foi resolvendo seu problema racial assim: com muita força policial, muita repressão e sem falar abertamente do conflito. E construímos uma identidade nacional como uma democracia racial pacífica, acreditando que o problema racial é um problema do outro.
O nosso olhar, sobretudo o da grande imprensa, sobre o conflito nos EUA, continua sendo esse: “Olha que absurdo o policial branco que matou o negro”. Mas dizendo subliminarmente, pelo silêncio, que no Brasil não tem isso.
BBC News Brasil – Mas ao mesmo tempo em que falamos do racismo estrutural nos EUA como um dos fatores que provocaram a onda de protestos, no Brasil, estudos mostram que 75 a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil são negras, inclusive em intervenções policiais. Estatisticamente, negros também têm menos escolaridade, menor renda e menos acesso à saúde, assim como lá. É possível dizer, mesmo subliminarmente, que “no Brasil não tem isso”?
Luciana Brito – É cada vez mais difícil sustentar esse discurso.
Mas sempre tem alguém que usa um argumento do tipo: “Lá nos Estados Unidos o policial que matou o homem negro foi branco, mas aqui no Brasil não há essa dicotomia, porque os policiais também são negros”.
Esse é o nó que o mito da democracia racial dá nas nossas cabeças.
Eu vi um vídeo de um policial branco nos EUA atacando uma jovem negra. A superior do policial, também uma mulher negra, interrompe a ação dele, o empurra violentamente para longe da menina e o repreende na frente dos colegas.
No Brasil, essa mulher ou esse homem negro, quando veste a farda, é capaz de abater uma pessoa negra, e é racismo mesmo assim. Porque, aqui, o policial negro é treinado pelo Estado para achar que todas as pessoas que se parecem com ele são criminosas. Quando está de farda, ele perde a identidade racial. Ganha uma espécie de selo de qualidade. Vira o “negro de bem”.
O racismo no Brasil é mais ardiloso. A população negra é maioria, mas é confundida como um inimigo que faz parte da sua vida, mas que não é declarado.
Por exemplo, não são todas as famílias negras que se identificam com a dor da família de Ágatha ou de João Pedro. Ou mesmo de Miguel. Elas pensam: “Poxa, que má sorte aquela criança estar ali”.
Aí vêm os argumentos: “Ah, mas estava ali fazendo o quê?” ou “Ah, foi um acidente”. Todos esses “poréns” solapam uma realidade que grita, que é o fato de que essas pessoas estão sendo abatidas por serem negras, por serem consideradas menos cidadãs. Menos seres humanos.
As pessoas no Brasil até aceitam dizer: “É porque era pobre”. Parece que é mais aceitável atribuir determinadas desigualdades à pobreza do que ao racismo.
BBC News Brasil – Como a classe influencia a percepção sobre o racismo no Brasil?
Luciana Brito – É interessante pensar que os ganhos que a população negra teve, fruto de conquistas do movimento negro, como a Lei de Cotas Raciais e a PEC das Trabalhadoras Domésticas, mexeram nas estruturas da sociedade brasileira e criaram uma reação violenta. E foram leis que se relacionam muito à formação de uma classe média negra no Brasil.
As trabalhadoras domésticas passaram a ter direitos trabalhistas, os filhos de muitas entraram nas universidades, ou elas mesmas encontraram outras possibilidades de emprego — eu tenho hoje colegas que foram trabalhadoras domésticas. E aumentaram as possibilidades para a juventude negra através da educação universitária.
Essa possibilidade de que negros pudessem transitar, em maior quantidade, pra outra classe social, incomodou muito as estruturas do racismo brasileiro. Porque a diferença de classe social no Brasil se estrutura na raça.
Só que para uma pessoa negra — e aí falo da minha própria experiência e dos meus amigos — transitar para a classe média significa apenas que você acessa os bens de consumo da classe média. Você mora legal, tem carro bacana, seu filho vai para escola particular, mas você continua emaranhado no racismo estrutural.
Quando entro em uma loja de creme de cabelo, o segurança ainda me segue. Quando eu vejo uma criança como Ágatha ou João Pedro serem alvejados, isso me afeta diretamente, porque tenho uma criança com aquelas características. Eu tenho medo de meu marido dar um passeio na rua à noite sozinho.
Além disso, o restante da minha família não é classe média. Eu sou a única. É por isso que dizemos que não há saída individual para sair desse racismo, embora muitas pessoas negras acreditem que isso é possível.
Fonte: BBC