Isolada no extremo oeste do Amazonas, a cidade de Japurá leva um mês sem nenhum médico trabalhando nos quatro postos de saúde mantidos pela prefeitura. A rede de atenção básica do município, onde só é possível chegar de barco ou avião, dependia integralmente dos profissionais cubanos do programa Mais Médicos, que deixaram o país após o Governo de Cuba discordar das condições do presidente eleito, Jair Bolsonaro, para a continuidade do programa. Há semanas a prefeitura espera repor essas vagas, mas não conseguiu atrair o interesse dos médicos brasileiros, os únicos aptos a participar da primeira fase do edital lançado pelo Governo federal no dia 20 de novembro. Como o prazo de apresentação dos médicos formados no Brasil terminou na última terça-feira, a esperança agora é que a cidade consiga atrair os profissionais graduados no exterior. Em todo o país, 31% das 8.517 vagas deixadas pelos cubanos não foram substituídas por brasileiros, segundo dados divulgados nesta quinta-feira pelo Ministério da Saúde, mesmo com todos os esforços da pasta em prorrogar os prazos de apresentação e contatar os milhares de profissionais inscritos para incentivá-los a efetivar a ocupação das vagas.
O déficit da reposição dos médicos desenha um cenário de desassistência grave no Amazonas, estado brasileiro que menos atraiu os profissionais com registro no país, segundo balanço do Ministério. As particularidades desta época do ano deixam a situação do estado ainda mais dramática. Se não conseguirem atrair os profissionais estrangeiros, os municípios do Estado deverão enfrentar os próximos meses de cheias e enchentes com 75% das 322 vagas do Mais Médicos descobertas, justamente quando se proliferam as doenças transmitidas pela água e tratadas na atenção primária, como diarreia, dengue e leishmaniose. O número de brasileiros inscritos para atuar nas cidades amazonenses foi até significativo (224), mas alguns profissionais condicionaram a ocupação das vagas a benefícios que iam de adicionais de 10.000 reais (além dos 11.000 reais de remuneração pagos pelo Governo federal) à oferta de casas equipadas com televisão a cabo e internet. Sem acordo com os gestores municipais, já que esse tipo de negociação é vetada pela própria legislação do Mais Médicos, apenas 79 vagas foram efetivamente reocupadas no Amazonas. A situação da cidade de Japurá é simbólica porque concentra os maiores empecilhos dos municípios amazonenses para fixar os médicos: a distância dos grandes centros, o isolamento e o difícil acesso.
A rota menos demorada entre Japurá e a capital Manaus demora seis dias de barco. Desde a saída dos profissionais cubanos no mês passado, o município está com os postos de saúde totalmente descobertos e é assistido apenas pelos dois médicos que já atuavam na atenção secundária. Um deles, vinculado ao Governo estadual, está na cidade apenas quatro dias por mês. O outro, contratado pela prefeitura com um salário bruto de 25.000 reais, presta atendimento durante 12 dias a cada mês no único hospital do município. Quando nenhum deles está na cidade, o jeito é encaminhar os casos que vão se agravando para Manaus, em um percurso pela Amazônia que é impossível de ser feito por terra. O único avião disponível pelo poder público para transferir os pacientes só pode ser usado em casos extremamente graves por conta do elevado custo financeiro —um voo chega a custar 14.000 reais, segundo a Secretaria de Saúde de Japurá. Resta à maioria dos pacientes enfrentar os 744 quilômetros que separam as duas cidades em uma viagem longa e árdua, repleta de paradas policiais aos barcos motivadas pelo intenso tráfico de drogas na região, já na fronteira com a Colômbia.
“É muito complicado e muito sofrido ter que fazer uma viagem de barco pelo rio, com todo aquele balanço, quando você está doente. É um sofrimento que a gente poderia evitar com a presença dos médicos no município. Infelizmente, ainda não conseguimos nenhum”, diz a secretária de saúde de Japurá, Maria Rosilene Coelho. Sem condições financeiras de contratar mais profissionais e enquanto espera o Governo federal conseguir substituir os cubanos do Mais Médicos, ela conta que tenta garantir uma assistência mínima com mutirões de atendimento, orientações feitas pelos enfermeiros e transferências de pacientes graves para a capital. Ainda assim, reconhece que essas ações estão longe de garantir a assistência de saúde adequada à comunidade de pouco mais de 7.300 habitantes, de acordo com o último Censo, de 2010.
“Eu tô muito preocupada porque estamos agora em época de chuva, quando muitas doenças se alastram. Conseguimos nos últimos anos melhorar esses índices, mas sem assistência, vai voltar tudo de novo”, diz Rosilene. As inundações, comuns nesta época do ano, costumam afetar a rede pública de abastecimento de água e interromper temporariamente as atividades das estações de tratamento. A população passa, então, a consumir a única água que tem disponível, mesmo contaminada, e fica vulnerável ao risco de doenças como diarreia, hepatite A e cólera. A água parada também aumenta a proliferação de mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, zika e chikungunya.
Médicos tentam negociar condições
A cerca de 700 quilômetros de Japurá, na cidade de Careiro Castanho (AM), de cerca de 33.000 habitantes, a preocupação é a mesma. Neste período de cheia, as casas localizadas em áreas ribeirinhas ficam literalmente sobre as águas. “A gente distribui um produto para tratamento dessa água, mas a comunidade consome muitas vezes a que está contaminada. Sem médico, é muito complicado conter as doenças nesse período”, diz a secretária de saúde Aldineia Silveira. O município, apesar de estar no entorno da capital Manaus, só conseguiu preencher uma das quatro vagas abertas no último edital do Mais Médicos. “Alguns interessados até entraram em contato, mas queriam negociar condições inviáveis para realmente preencherem as vagas”, conta.
Aldineia diz que um profissional sugeriu trabalhar apenas 16 horas semanais na cidade em vez das 32 exigidas pelo Mais Médicos para que a vaga valesse a pena, assim se deslocaria até a cidade apenas duas vezes por semana. “Isso impediria as visitas domiciliares, não haveria tempo pra elas. A gente precisa do profissional no município”, defende. Outro médico que já trabalhava na cidade pediu demissão para assumir uma vaga pelo programa em outro local, mas antes de sair contou à gestora que só ficaria seis meses no novo posto, permanência mínima prevista pelo Mais Médicos para isentar o ressarcimento da ajuda de custos de 30.000 reais que o Governo oferece para a mudança dos profissionais que estão migrando de cidade. “Estamos vivendo um rodízio de médicos nos municípios e ficando desassistidos justo na época que é crítica no Amazonas, o inverno”, diz a secretária.
A cidade de Borba, a cerca de 200 quilômetros de Manaus, é referência no Estado por ter uma das melhores estruturas na atenção básica, mas também não conseguiu preencher todas as vagas antes ocupadas pelos cubanos. Só dois profissionais brasileiros se apresentaram na cidade, e três vagas ainda seguem ociosas. “Uma médica me ligou e até disse que vinha, mas só se o município desse uma contrapartida de 10.000 reais, alimentação e mais uma casa equipada com TV a cabo e internet. Não tinha como aceitar, a gente nem teria como justificar esses gastos nas prestações de contas”, diz o secretário municipal de saúde, Albert Antunes Souza Campos. “Aqui no Amazonas o médico brasileiro não vai trabalhar no interior por menos de 15.000 reais. A grande questão não é a estrutura dos postos, porque isso Borba tem, mas é o salário”, explica.
O programa Mais Médicos tem normas claras com relação à carga horária e ao valor da bolsa paga pelo Governo federal aos profissionais. O município pode oferecer uma ajuda de custos para moradia e alimentação cujo teto é de 3.000 reais. Além disso, há um sistema eletrônico por meio do qual é feito um controle da carga horária mínima do profissional. Se as condições do programa não forem cumpridas, o médico pode ser cortado do programa. O presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Amazonas, Januário Neto, diz que a entidade vem orientando os municípios a não negociarem condições além das previstas para atrair os inscritos no programa. “Além de ser ilegal, é imoral. Seria abrir precedente pra gente voltar a uma realidade do leilão dos médicos entre os municípios. E os menores sairiam perdendo sempre”, diz.