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Entrevista: “A lógica da Previdência não deve ser uma lógica financeira”

Conversamos com o contador e integrante do Comitê para a Anulação das Dívidas Ilegítimas (CADTM) do Núcleo Baiano da Auditoria Cidadã da Dívida, Bruno Tito, sobre o orçamento da União e o desmonte da Previdência Pública.

Qual a relação entre a Dívida Pública e a economia brasileira? Há uma total relação, porque se nós pararmos para observar os últimos 30 anos e principalmente as últimas medidas estruturais, a política econômica e o sistema legal, toda a concepção financeira do Brasil esteve, e está, completamente atrelada à garantia do pagamento das amortizações dos juros do serviço da Dívida Pública, seja ela interna ou externa. Por exemplo, a Emenda Constitucional 95/2016, que foi apelidada PEC do Teto ou PEC da Morte, congela desde o ano passado, por 20 anos, as despesas primárias com Saúde, Educação, investimentos, Seguridade Social, mas não limita os gastos com a Dívida Pública. A gente tem nos últimos anos uma queda na arrecadação e no crescimento do PIB, e uma crise econômica em que quem paga a conta é a população. A gente vê um conjunto de medidas que penaliza o povo e todo o investimento em políticas públicas para garantir o pagamento da dívida. O problema é que quanto mais a gente faz dívida aqui no Brasil, menos recursos nós temos para as áreas sociais, e aí a gente entra numa contradição: toda Dívida Pública tem que ter uma contrapartida. O problema é quando essa dívida e suas despesas não servem para financiar as políticas públicas do estado. Quanto mais a gente paga a dívida, mais a dívida cresce, ou seja, a dívida pública se transformou num grande negócio para o sistema financeiro (grandes bancos nacionais e internacionais), que utiliza o sistema da dívida como um mecanismo de transferência de recursos públicos sem nenhuma contrapartida social.

 

Porque nenhum dos governos anteriores se propôs a auditar a dívida? Entre 2009 e 2010 nós tivemos uma iniciativa importante que foi a CPI da Dívida Pública, que pela primeira vez, nos últimos 30 anos, teve acesso a relatórios e documentos que comprovaram várias ilegitimidades e algumas ilegalidades em relação a Dívida Pública, a exemplo de contratos de dívida que pagamos até hoje e que a CPI comprovou que estão prescritos. Mas, o relatório da CPI não foi levado para frente, muito por conta da força que o sistema financeiro exerce sobre o Congresso. Infelizmente, independente dos governos, o problema da dívida pública não foi enfrentado. Em 2007, o governo Lula anunciou que pagou a dívida externa, mas, na verdade, quando a gente acompanha os dados do próprio Banco Central, a gente vê que ao invés de pagar, a dívida deu um salto e cresceu justamente a partir de 2007. O que se fez foi trocar parte da dívida com o FMI que tinha juros em torno de 4%, por uma dívida externa maior com juros flutuantes em torno de 20%. Ou seja, nenhum governo, mesmo aqueles mais progressivos como o governo Lula, chegou a enfrentar de forma séria o problema da dívida pública. O governo Dilma teve sua oportunidade em 2015, mas, chegou a vetar sob o argumento de que isso poderia afastar os investidores e causar uma inquietação no mercado financeiro. Ou seja, há uma opção dos governos, independente se eles são progressistas ou não, de fazer política econômica e orçamentária com base nos interesses do mercado, e não nos interesses da população. A gente tem um exemplo na América Latina que é o Equador, que nos anos 2000 realizou uma auditoria da dívida equatoriana, inclusive com a participação da Auditoria Cidadã Brasileira, através da nossa coordenadora nacional Maria Lúcia Fattorelli, em que se comprovou que cerca de 70% da dívida era ilegítima. O governo na época do Rafael Correia chamou todos os credores para apresentar o relatório e deu oportunidade para contestaram. Apenas 5% contestou e isso se deve a dois motivos: não havia o que contestar e isso poderia ser um alarde de chegar no Brasil. Justamente nessa época, o governo anuncia aqui que pagou a dívida externa, mas na verdade não pagou. Pagou apenas uma parte dela, o que não resolveu o sistema da dívida. Para resolver, é necessário fazer com que o povo entenda como funciona o orçamento e o sistema da Dívida Pública, ou seja, que o povo se empodere do conhecimento do que é feito com o seu dinheiro, com o dinheiro público. Quando se nega o acesso às informações, como agora em que o governo se nega a apresentar os dados econômicos que serviram de base para a reforma da Previdência, é esse cenário que nós temos.

 

Qual é a relação entre a Dívida Pública e a reforma da Previdência? Quando a gente analisa o orçamento brasileiro a gente vê que metade vai para o pagamento da Dívida Pública. Cerca de 24% vai para a Previdência Pública, ou seja, o segundo maior gasto. A lógica da Previdência não deve ser uma lógica financeira. A Seguridade Social (Previdência, Saúde e Assistência Social) são garantias de uma segurança de bem-estar e sobrevivência. É um direito à vida e não pode ser considerado sob o ponto de vista financeiro. Nos últimos anos, como a gente tem uma queda de arrecadação por diversos motivos – crise econômica ou opções econômicas do governo – os governos fizeram a opção de que quem deveria pagar a conta dessa crise seria a população – os trabalhadores, a juventude. Se a gente for comparar os períodos de crise depois de 2004, a gente repara que quanto mais se fala em crise, mais o lucro dos bancos bate recordes. É uma questão contraditória, mas mostra a opção dos governos de priorizar a garantia dos lucros do sistema financeiro em detrimento das políticas públicas. É aí que entra a relação da atual reforma da Previdência e a atual dívida pública, inclusive, relacionada com a EC 95/2016.

Quais os principais problemas da proposta da reforma da Previdência? São vários, e nós costumamos dividir em duas categorias: mudanças estruturais e não estruturais. As estruturais são gravíssimas e uma se refere à desconstitucionalização da Previdência Social. A Previdência, assim como a Seguridade, é um direito que está assegurado na Constituição Federal. Com a sua desconstitucionalização, nós temos a diminuição da segurança jurídica que a população tem em seus direitos previdenciários. Toda a Constituição é reflexo da correlação de forças entre os trabalhadores e o capital, e por um conjunto de fatores, nossa Constituição foi construída em contradição com o que acontecia no restante do mundo, num momento em que estávamos assegurando um modelo que é referência em solidariedade, de Previdência pública. Já as mudanças não estruturais dizem respeito ao regime de capitalização, que rompe com o que baseia a Previdência hoje que é a repartição simples, baseado na solidariedade. A gente costuma dizer que cada trabalhador não contribui apenas para a sua aposentadoria, pois o caráter da Previdência é solidário, ou seja, contribuímos para nossas aposentadorias e benefícios previdenciários, mas contribuímos também para a aposentadoria daqueles que estão inativos ou prestes a se aposentar. Inclusive, ela é transgeracional, a gente contribui para as futuras gerações. Além disso, traz uma série de outros problemas, como praticamente o fim da garantia do estado com relação ao pagamento dos benefícios previdenciários, coloca a opção dos empregadores de contribuírem ou não, e representam uma ameaça que é a privatização da Previdência, já que quem passaria a administrar os regimes de capitalização seriam os bancos. E aí a gente se pergunta: quem confia em banqueiro? Se um banco quebrar, se o estado não garante mais a Previdência pública, quem é que vai garantir as aposentadorias? Na maioria países em que foi implantado o regime de capitalização já está havendo um processo de revisão para voltar aos regimes anteriores. Nós vemos movimentos de trabalhadores e da população nas ruas para revogar esse regime de capitalização, que se mostrou falido e que não garante a aposentadoria dos trabalhadores, a exemplo do México e do Chile.

E o que a gente tem de alternativa à reforma da Previdência para a classe trabalhadora? Como o principal argumento do governo para a reforma é o orçamentário, já que eles falam que a Previdência apresenta déficit – até 2015 ela foi superavitária e só a partir de 2016 e 2017 ela apresentou uma tendência de déficit e faltar recursos para bancar a Seguridade Social -, eles escondem o principal motivo para o déficit atual, que é a desoneração das grandes empresas. Os empresários passam a pagar cada vez menos contribuições à Previdência, menos tributos, com o argumento de que o governo estaria estimulando investimentos, pois as empresas pagando menos tributos e contribuições à Seguridade Social, geraria mais emprego, mais renda. Mas, não é isso que a gente vê. Em 2016 as desonerações das empresas superaram os déficits da Seguridade Social. Além de rever as desonerações, por exemplo, rever a desvinculação das receitas da União, que até 2015 desvinculava até 20% da Seguridade Social, o que é uma contradição. Se falta recurso na Seguridade, por que desvincular recursos para garantir uma poupança para pagar o serviço da Dívida Pública, que aparentemente não tem nenhuma contrapartida social? A partir de 2016, o que era 20% aumentou – por meio da EC 93/2016 – para 30% de desvinculação. Além disso, há outras duas alternativas que nós apresentamos. Primeiro: uma reforma tributária solidária. O Brasil é o segundo país que mais tributa sobre o consumo entre todos os membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), e isso significa que quem mais paga os tributos são os trabalhadores com base no consumo, na compra de mercadorias, do feijão, do arroz. E o Brasil é um dos países que menos tributa a renda, ou seja, além de quem ter mais pagar menos tributos, e quem ter menos pagar mais, o Brasil tem uma lógica de tributação sobre o consumo que penaliza a população, e isso incide diretamente no orçamento da Seguridade Social. Uma fonte muito importante de financiamento da Seguridade é a COFIN, a CSLL que é a contribuição sobre o lucro líquido, dentre outros tributos. Por exemplo, a COFIN é um tributo indireto, ou seja, baseado no consumo, e aí se você tem uma crise econômica com desemprego, com menos pessoas comprando e comércio desacelerado, claro que você vai ter uma queda na arrecadação do estado. Agora pare para pensar: se no Brasil quanto mais se fala em crise, mais o lucro dos bancos aumenta, imagine se a tributação do país fosse ao contrário – ao invés de tributar em cima do consumo, se tributasse em cima da renda? Nós estaríamos com os cofres cheios de recursos e não teríamos esse cenário de déficit.

 

As opiniões expressas não refletem, necessariamente, o posicionamento da diretoria do SEEB/VCR.

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