Na era da informação rápida, do consumismo exacerbado e do trabalho exaustivo, a sociedade tem recorrido cada vez mais aos medicamentos ansiolíticos e antidepressivos.
A psicanalista Vera Iaconelli aponta que a “lógica capitalista e individualista, do cada um por si” tem sido a tônica do novo modelo de sociedade. “O sujeito vai sendo apagado, e isso tem um preço muito grande. A partir do neoliberalismo, isso se potencializa de uma forma gigantesca”, considera.
Iaconelli lembra que há estudos, inclusive, que apontam para uma falta de especialistas capazes de tratar pessoas com questões de saúde mental. “Hoje, se a gente tivesse todos os “psis” – psicólogos, psicanalistas, psiquiatras – atendendo a população, ainda assim não haveria serviço suficiente para a demanda que existe”, ressalta.
“Significa que a gente está vivendo uma situação tão insalubre na realidade de vulnerabilização dos serviços, do enxugamento do estado, que a gente precisa começar a pensar numa frase do Tom Zé, que me ocorreu agora: ‘ao persistirem os médicos, consulte o sintoma’”, explica Iaconelli.
A psicanalista é a convidada desta semana no BdF Entrevista, que lembra o Dia Internacional da Saúde Mental, neste 10 de outubro. Na conversa, Iaconelli fala, entre outros temas, sobre seu novo livro, O manifesto antimaternalista, que defende uma nova convenção para a maternidade, que tem esgotado as mulheres.
“O que a gente observa é que a maternidade está entrando em colapso, porque as mulheres já não conseguem mais exercer tantas funções ao mesmo tempo. O que está acontecendo é que as mulheres estão começando a entender que são elas que estão oprimidas por uma situação, e não elas que têm que correr atrás de corresponder a isso”, explica Iaconelli.
“Agora a mulher fala assim: ‘eu quero ser mãe, mas eu quero ser pai do meu filho, eu quero ter uma vida, eu não quero abrir mão’. Para ser mãe, as mulheres sempre acharam que tinham que abrir mão de uma vida. E hoje elas falam assim: ‘nossa, eu fui enganada, não era para ser assim não’.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Você está lançando o teu livro, O manifesto antimaternalista. Apesar do nome, ele não é contra a maternidade, é, na verdade, por uma nova maternidade apoiada por outros entes da sociedade, certo?
Vera Iaconelli: É, exatamente. Porque as pessoas não conhecem esse termo maternalismo, que é um termo que vem da sociologia, as pessoas interpretam que poderia estar falando contra a maternidade. Não é disso que se trata, se trata, ao contrário, de defender a maternidade, pensando como a gente pode tirar certas ideologias que sobrecarregam as mulheres no papel de mães. Como a gente pode repensar a forma como a gente entende a maternidade hoje.
O que a gente observa é que ela está entrando em colapso, porque as mulheres já não conseguem mais exercer tantas funções ao mesmo tempo. Então, o antimaternalismo é uma certa forma de entender a maternidade hoje, o que está levando a maternidade ao colapso.
Ainda há essa questão de uma mulher que opta por não ser mãe ter esses conflitos na sociedade? Uma regra que era tida como o caminho natural da vida?
Há, as mulheres se queixam muito disso. O que mudou é que as mulheres têm mais convicção de dizer não, não quer dizer que elas não sofram com as expectativas: “Ah, por que você não quer? Você tem algum problema físico? Não encontrou o homem certo? Qual seu problema?”.
As pessoas querem saber porque ela escolheu isso, achando que deveria existir alguma patologia implícita aí. O que modifica é que as mulheres estão assumindo que não querem ter filhos, mas as expectativas continuam.
E o que essa escolha por não ter filhos implica na vida dessas mulheres?
Às vezes as pessoas falam assim: “Ah, a pessoa não vai ter filhos e depois ela vai se arrepender”. Mas a gente também vê muitas pessoas que têm filhos e se arrependem. Tem um livro que se chama Mães Arrependidas, de uma jornalista israelense [Orna Donath], no qual ela entrevista inúmeras mulheres que depois de anos, embora amem seus filhos – não gostariam que eles não existissem -, se arrependem do estilo de vida que passam a ter a partir da entrada na maternidade.
Claro, pode ser que lá na frente você fale: “Ah, eu gostaria de ter tido”. Porque na nossa cabeça tem sempre uma vida paralela, “numa vida paralela não ia ser jornalista, eu ia ser outra coisa, ia ser dançarino, ia fazer teatro”, sei lá.
A gente tem sempre uma fantasia, principalmente na velhice, de que se a gente tivesse feito outro caminho, casado com outra pessoa…Então, fica essa ideia de “talvez eu me arrependa lá na frente”. Mas pode acontecer nos dois casos. São sempre apostas que só depois a gente vai saber no que elas vão dar.
Você começa o livro trazendo sua experiência familiar. Esse livro é também sobre a sua relação com a maternidade?
Necessariamente, porque eu acho que quando a gente faz uma escolha ao longo da vida e a gente vai reiterando essa escolha, ela diz respeito à nossa história, diz respeito a questões inconscientes também. No meu caso, em relação à minha família, à minha questão sobre a origem, que está colocada desde o começo por conta da minha mãe ter sido adotada na maternidade onde ela nasceu, uma adoção à brasileira, eu começo o livro contando isso, mas depois também como mãe, como mulher, com as minhas duas filhas, que hoje são jovens adultas, tudo que eu passei para conciliar o casamento, a vida pessoal, o trabalho, a maternidade, que foi muito investida, mas também um trabalho muito investido.
E na clínica como psicanalista, três décadas ouvindo as mulheres, se havendo com essa conciliação também. Foi nessa mistura de coisas que a minha pesquisa se deu, sempre voltada para a psicanálise e a parentalidade. Eu tentei responder algumas questões que vieram da clínica, da teoria e também da minha vida pessoal através desse último livro.
Quando a gente se propõe a escrever, se debruça sobre um filme, um livro, qualquer que seja uma produção que a gente está fazendo, nós construímos críticas a nós mesmos no processo. Como é que foi para você escrever esse livro e se confrontar com a tua maternalidade?
Quando você escreve e vai desenvolvendo o teu pensamento, vai se expondo terrivelmente, e as coisas que não consegue entender, provavelmente são coisas que você não consegue entender na tua própria história. Quer dizer, pra psicanálise são coisas às quais você resiste porque são dolorosas ou porque são difíceis.
Escrever é, inclusive, um método da psicanálise, né?
Sim, a escrita pode ser extremamente elaborativa, principalmente quando ela é ficcional. Mas na não ficção você também está se expondo, você também está falando dos teus dilemas, das suas questões, dos teus medos, das suas fantasias, aquilo que está um tanto colocado ali.
Tanto que eu vou mostrar no livro a posição de Freud, lá em 1920, como era atravessada pelo maternalismo, como era atravessada pelas fantasias do Freud em relação à mulher e à mãe. Então, a gente está atravessado, na nossa época, com as nossas fantasias e as nossas crenças. Todo esse estudo me fez rever muito a minha posição como mãe, como mulher. É uma coisa que você procura elaborar algo, mas aquilo se transforma também para você.
Você também traz no livro a expressão “padrão ouro de maternidade”, de cuidado. Como isso impacta na imagem que a mulher tem quando pensa em um ideal de mãe? Às vezes essa ideia esbarra em algo completamente inacessível…
É, isso eu trago como um tema muito sério no livro, porque a gente fala assim: “ai, a maternidade é tão linda, é sagrada”. Sim, mas depende de qual. A maternidade branca, de classe média alta, de mulheres casadas, cisgênero, heterossexuais, com seu maridinho, babá, genitoras – que gestaram e pariram – é a maternidade padrão ouro.
Conforme você vai tendo recortes de classe, de gênero, de raça, aí entram também as mulheres lésbicas, as mães solo, as adotantes, as mulheres negras, as mulheres periféricas, pobres, as mulheres trans, os homens trans, você já vai tendo uma queda nesse padrão ouro, ou seja, um olhar de preconceito, de racismo.
A gente tem um número grande de mulheres que são destituídas do seu papel de mães, porque elas não chegam nesse padrão ouro. Mulheres que vivem numa situação de pobreza e que, ao invés do estado chegar e ajudá-las, ele tira essas crianças das mães, dizendo que elas estão vivendo uma situação de pobreza, mas estão mesmo, né?
Tem muito preconceito com essas mães que não estão nesse nível. Isso é muito importante pra gente pensar, por exemplo, no poder Judiciário, na escola. Como a gente escolhe as mães que devem ser ouvidas, aquelas que devem ser destituídas? Se a gente chama o pai ou não chama? O que a gente pensa da maternidade vai fazer toda a diferença em relação à justiça, educação, política públicas.
Você também fala sobre o burnout, que é essa carga mental, de trabalho, da maternalidade, e tudo o que envolve essa nova mulher. Você acha que o mundo não soube lidar com o avanço da mulher, seja no mercado de trabalho, seja nas suas relações sociais, afetivas ou não, amorosas ou não?
Olha, decididamente não soube. Porque, na verdade, as mudanças que vieram com o feminismo, essa revolução sem tiros – porque, na verdade, quem morre no feminismo são as mulheres – essa revolução social do feminismo empurrou os homens para uma nova realidade, de uma forma que os homens precisaram se virar e entender qual a paternidade deles.
Na medida que elas vão para o mercado de trabalho em uma outra posição – porque as mulheres sempre trabalharam, mas a partir dos anos 1960, 1970, elas não querem aquele trabalho invisível, do dinheiro para o alfinete, aquele trabalho que o marido tinha vergonha que a mulher trabalhava, elas querem ocupar todos os postos de trabalho, aqueles que eram reconhecidos como masculinos.
Quando elas assumem essa posição, elas vão reivindicando que o homem entre dentro do trabalho de cuidados. A gente vai ter, por exemplo, uma coisa que era impensável, que era a guarda compartilhada se tornando uma coisa absolutamente banal. E isso vai obrigando o homem a responder com uma nova paternidade, porque ele tem que cuidar, e isso vai criando uma nova masculinidade.
Então, você veja, é todo um esforço de batalhar para ganhar espaço, para conquistar direitos que, de fato, a sociedade não está preparada. A gente vai ter que trabalhar muito ainda para conquistar isso.
EMBED
Ainda sobre o burnout, você faz atendimentos clínicos há 30 anos. Como tem sido o avanço dos diagnósticos no teu consultório?
O burnout é um termo mais midiático, a gente não usa essa expressão na psicanálise, a gente vai falar de sofrimento e de sintomas. O que eu tenho observado é que as mulheres são as principais pacientes dos consultórios, as que mais procuram. O que está mudando é que elas sempre sofreram, sempre tiveram sintomas, sempre ficaram sobrecarregadas, só que agora elas estão começando a questionar esse modelo, porque elas sempre colocaram como: “eu devo estar fazendo alguma coisa errada, por isso eu estou doente. Devia correr mais atrás, fazer mais, ser que nem a minha mãe foi, ser que nem a minha avó foi, conseguir conciliar 10 coisas ao mesmo tempo”.
Agora, elas começam a desconfiar de que talvez não seja uma coisa a qual elas devem se adaptar, mas uma coisa que elas devem reivindicar uma mudança, porque você pode dizer: “Ah, eu estou exausta com meu trabalho, eu vou tomar um remédio para trabalhar melhor”. Não, talvez você tenha que repensar se o teu trabalho é um trabalho que leva em consideração a saúde mental dos funcionários.
Então, o que está acontecendo é que as mulheres estão começando a entender que são elas que estão oprimidas por uma situação, e não elas que têm que correr atrás de corresponder a isso. Isso traz muito ressentimento, porque é uma hora que cai a ficha: “estou sendo explorada, estou bancando a trouxa, o outro não está cumprindo a parte dele e eu estou sendo sobrecarregada”. Vem muito ressentimento, muita raiva, muito sintoma, muito sofrimento…
“O que eu perdi para chegar até esse lugar, será que, de fato, vale a pena?”
“Precisaria ser assim? Isso é a maternidade ou é a maternidade hoje que é injusta?” É a grande história que está se falando agora, que é mulher fala assim: “Eu quero ser mãe, mas eu quero ser pai do meu filho, eu quero ter uma vida, eu não quero abrir mão”. Para ser mãe, as mulheres sempre acharam que tinham que abrir mão de uma vida. E hoje elas falam assim: “nossa, eu fui enganada, não era para ser assim não”.
A taxa de natalidade tem caído cada vez mais. Há lugares no mundo que tem feito programas, inclusive, para estimular a natalidade, porque já existe um desequilíbrio nessa pirâmide. Isso é só fruto desse feminismo novo, dessa revolução sem armas, ou é uma consciência que os pais têm de uma nova realidade do mundo”?
Eu adoraria dizer que foi uma sacada, uma mudança de mentalidade, uma questão moral. Não é, vai esbarrar em uma questão econômica. No livro eu também falo um pouco desses momentos de virada, onde a questão econômica se sobrepôs e que levaram, inclusive, a que as mulheres fossem obrigadas a cuidarem sozinhas dos filhos.
E hoje o que a gente é o contrário. É uma espécie de greve de útero, no qual as mulheres vão percebendo que é impossível conciliar, se for pensar que a gente tem no Brasil 51% dos lares brasileiros chefiados por mulheres. Quer dizer, elas estão chefiando o lar, fazendo economia de cuidados, não tem mais aquela divisão de o homem prover financeiramente a mulher e ela cuida da casa que, na verdade, nunca existiu pra valer mesmo, é mais uma ideia do que um fato, pelo menos para uma camada maior da população.
Então, nesse momento, as mulheres começam a perceber que talvez não dê. Tem as que não querem ter filhos, é ótimo, tem aquelas que até gostariam e não tem, tem aquelas que gostariam de ter muitos e tem um ou dois no máximo, e você vai tendo um déficit demográfico, ou seja, nascem menos pessoas do que o necessário para repor a população mais velha.
Isso vai se tornando um problema econômico e político importantíssimo e que, interessante, a solução são aquelas que a gente já vem pleiteando desde sempre: licença parental e não só materna; garantia de volta do emprego depois da licença maternidade, com estabilidade; ganhar mais e não ganhar menos – porque as mulheres ganham menos porque elas engravidam, elas deveriam ganhar mais.
Às vezes não são contratadas porque podem engravidar ou porque estão grávidas…
Exatamente, ou já ganham menos porque vão sair na licença maternidade, quer dizer, o inverso. Então, começam a aparecer uma série de subsídios financeiros, inclusive, ou seja, a gente está fazendo um trabalho de graça, invisibilizado. E a tentativa é cooptar essas mulheres através desses apoios, mas não está funcionando.
Você falou sobre saúde mental, e o 10 de outubro é o Dia Internacional da Saúde Mental. Para além de toda essa carga das mulheres, que a gente tem falado durante o programa, a gente vive também uma questão geral de degradação da saúde mental da população. Que momento é esse?
A gente vive um momento dentro da lógica capitalista, que é individualista, cada um por si e só interessam os bens materiais, então, o sujeito vai sendo apagado e isso tem um preço muito grande. Mas a partir do neoliberalismo isso se potencializa de uma forma tão gigantesca que, com a ideia de estado mínimo, do cada um que se vire, cada um que cuide de si, o que que acontece é que a gente vai vendo as populações, aquilo que o estado poderia tentar equalizar nas diferenças, no abismo social, isso só aumenta.
Hoje, se a gente tivesse todos os “psis”: psicólogos, psicanalistas, psiquiatras, atendendo a população, se a população tivesse acesso a todos, ainda assim não haveria serviço suficiente para a demanda que existe, é interessante isso. Significa que a gente está vivendo uma situação tão insalubre na realidade de vulnerabilização dos serviços, do enxugamento do estado, que a gente precisa começar a pensar numa frase do Tom Zé, que me ocorreu agora: “ao persistirem os médicos, consulte o sintoma”.
Ou seja, se a gente está precisando de tanto médico, de tanto remédio, é que talvez o estilo de vida da gente tenha que ser repensado. Porque senão, a gente entra numa lógica que é assim: você não está bem no teu trabalho, então vou te dar um remedinho para você ficar bem energizado, para não ter que ir lá no teu trabalho e reivindicar que o teu trabalho é uma porcaria.
Ao invés de fazer uma reivindicação social de mudanças, a gente vai se medicando e vai se tratando para tentar se adaptar. Então, a saúde mental também tem que ser pensada em termos de: “será que eu tenho que mudar o estilo de vida, ao invés de achar que tudo tem que acabar em tratamento”?.
E parte da população tem se automedicado, ou está altamente medicada por dopantes e remédios que vão te colocar numa zona de conforto. Que reflexos isso tem para o nosso futuro?
Então, a gente sabe de vários escândalos da indústria farmacêutica. Hoje, nos Estados Unidos, por exemplo, morrem milhares de pessoas por dia por overdose de remédios que foram receitados, que são incentivados pela indústria farmacêutica para venda, e médicos que ganham prêmios, tem documentários, inclusive, várias reportagens denunciando isso, sobre o uso excessivo da medicação.
Isso entra numa lógica liberal, na qual você tem que estar bem. Se você não está bem é porque você deixou de fazer alguma coisa: ioga, pão, meditação, correr cinco horas da manhã, você está dormindo demais ao invés de acordar cedo e fazer o que você tem que fazer. Então, tem essa culpabilização do indivíduo, não se pensa mais no social.
E a medicação vem para preencher isso: “você não está bem, se medica”. A indústria farmacêutica entra com tudo, sem um pingo de ética. E a gente vai vendo esse adoecimento se propagar. A mentalidade é que você não pode sofrer, esse é o grande problema. A gente vai criando toda uma geração que acha que o sofrimento tem que ser evitado, ele não faz parte da vida. Isso é a ‘happycracia’, que os sociólogos estão discutindo, e que leva a gente à depressão, porque ou você encara que a vida tem sofrimento e vive, ou você finge que não e deprime.
Você escreveu recentemente sobre o Setembro Amarelo, e falou sobre como os homens têm lidado com essa masculinidade. Onde é que estão os pais homens nessa nova maternidade?
É assim, não é muito homogênea essa categoria, porque a hegemonia dos pais são ainda de homens que acham que o filho é da mãe, então quando ele se divorcia da mulher, ele se divorcia dos filhos, e é capaz de ter uma outra família, com outros filhos e se divorciar, e vai se divorciar de novo. Quer dizer, ele acha que o filho é da mãe, que ela que sabe cuidar, que não tem nada a ver com isso. E a gente tem 5 milhões de brasileiros sem o nome do pai no registro, esse é o hegemônico.
Mas você já tem homens que estão mostrando que existe a possibilidade de uma outra paternidade masculina, porque eu brinco que antigamente, o homem que trocava a fralda, a fralda parecia que era kriptonita, ele iria perder toda a masculinidade, por conta de uma ideia desvirilizante, de que isso não é trabalho de um homem.
Hoje isso já muda, você vai ter Rodrigo Hilbert, você vai ter Lázaro Ramos, você vai ter expoentes, pessoas nas novelas que falam que dá pra ser pai, que é bacana. Dá pra ser pai e masculino, ser pai de um certo jeito, cuidando tanto quanto ou mais do que uma mulher. Então, a gente vai mudando a mentalidade, mas ainda não é hegemônico.
O que a gente tem de vantajoso é que é uma geração que já tem modelos masculinos atraentes, já tem representatividade deste pai, que é tão bom cuidador quanto uma mãe, que não perde para uma mãe e que para isso não precisa se tornar uma mãe, nem a mãe precisa se tornar um pai, basta ser um cuidador e uma certa qualidade. O que o livro também coloca é que o cuidar não tem gênero. A gente chama de materno e paterno, mas na verdade, são cuidados e eles têm que ter uma certa qualidade que não está no gênero. Está na aprendizagem de cuidar do outro.
Você comentou também recentemente sobre como faltam recursos para os homens reconhecerem, nomearem e compartilharem afetos. Nos últimos quatro anos, a gente viveu um período em que uma falsa virilidade, aquela do imbroxável, foi muito difundida no Brasil, principalmente sob a presidência de Jair Bolsonaro. Há um caminho de volta, ou a gente vai ter que lidar com isso para sempre?
Então, o Brasil é um país conservador, a gente tem as nossas bolhas nos quais a gente acha que todo mundo pensa como a gente, mas a gente sabe que os estudos mostram que o brasileiro médio é conservador. O que acontece é que, o que a gente entende por homem e mulher, são discursos, são narrativas que vão mudando, tem as que são mais justas, tem as que são mais violentas, tem as que são mais injustas.
Está entrando fortemente um novo modelo de homem, que é um homem que pensa a relação de uma forma mais equânime, mas os discursos convivem e, às vezes, se chocam violentamente. Agora, o que a gente percebe é que os homens são criados, também hegemonicamente, para serem cuidados e para a ação. E as mulheres são criadas para cuidar e para a reflexão.
A mulher, geralmente, é aquela que intermedia as relações familiares: “ah, vai conversar com seu pai, ele está chateado que você disse aquilo”. “Ah, vai conversar com seu irmão…”. Ela fica sempre como um cão pastor tentando mediar, porque ela tem esse know-how mesmo, esse conhecimento, ela tem esse repertório, de pensar o que ela está sentindo e de comunicar, de nomear e de compartilhar.
A gente tem que transmitir isso para os meninos desde muito pequenos. O menino, quando vem chorando, os pais falam: “ah, vai brincar que passa”. A menina vem chorando e alguém diz “que foi, o que aconteceu com você?”. Vai criando um repertório afetivo que o menino não tem.
Quando a vida vai seguindo, você vai vendo que isso repercute, por exemplo, como no texto que você está citando, que eu estou falando do suicídio dos homens, porque na hora que o homem se vê em uma situação difícil – e todos nós enfrentamos situações difíceis em uma certa altura da vida, ou às vezes, a vida toda – ele não tem muita capacidade, repertório mesmo para pensar o que ele está sentindo, para nomear, para contar para alguém, os amigos falam sobre tudo, menos sobre a vida íntima. Tem muita dificuldade de criar intimidade nas relações.
As mulheres estão mais lá na frente, a gente vai ter que também trabalhar muito isso com os homens para eles poderem estabelecer relações mais profundas entre si, com as mulheres, com os filhos e, quem sabe pegar menos em armas e partir para o diálogo.
Queria aproveitar que você falou sobre a criação dos filhos e lembrar de outro livro teu, o Criar filhos no século 21. Há um desafio cada vez maior em um mundo cada vez mais conectado, e até individualista, no ato de criar filhos. Como isso foi se modificando ao longo do tempo?
Olha, cada geração tem ônus e bônus nesse papel de cuidar de filhos, não tem a geração perfeita, todas têm as suas encrencas. E depois, o mais engraçado é que a gente se esmera em fazer de um certo jeito e os nossos filhos fazem questão de fazer de outro. Nós somos uma sociedade que está sempre em transformação, diferentemente das sociedades tradicionais, por exemplo.
A gente vive hoje um momento de mais liberdade na relação com os filhos, uma relação mais horizontal, isso tem seus custos. Mas a gente também vive um momento de mais intimidade com os filhos. Hoje, diferentemente dos pais dos anos 1950, que o pai colocava no mundo, educava e segue – que também é legal porque a criança se emancipava rápido.
Hoje, os pais querem saber como os filhos estão se sentindo, o que estão vivendo na escola, são mais presentes na vida da criança, compartilham mais a vida da criança. Então, a gente vive um momento com alguns paradoxos. Eu acho que o que é mais marcante nesta geração da qual a gente faz parte é a entrada da internet.
A entrada da internet deixou os pais muito desorganizados, com mil informações que eles não sabem conciliar, muito desautorizados: “ah, será que o certo é isso, ou será que o certo é aquilo?”. Ao invés de se consultar um pouco mais. Sempre [utilizando como parâmetro] o que os outros estão fazendo.
E também, as crianças tiveram, na relação com a internet, o que a gente chama de ego auxiliar. Elas vão se reportar à internet mais do que aos adultos. A internet não é só uma telinha, é lá que elas perguntam tudo sobre sexo, sobre a vida, sobre amor, o primeiro encontro, como é que beija, tudo.
Então, tem uma cisão aí que vem com a internet e que a gente vai ter que regular. Eu diria que é uma geração um pouco boi de piranha, a gente pegou esse aparelho e está se batendo com ele e vai ter que trabalhar bastante a regulação e aprender a lidar com essa situação. Para resumir, o livro que você cita, ele não chama “Como criar filhos”. Não, é só “Criar filhos”, porque como não tem [um caminho único] a gente vai ter que fazer uma reflexão para descobrir, nesse mundo caótico que a gente vive hoje, o que é valor para nós e o que não é, e como a gente lida com isso.
Fonte: Brasil de Fato.