O resgate de 163 operários por estarem em condições análogas à de escravos e a interdição de alojamentos e trechos do canteiro de obras da planta onde a montadora de automóveis Build Your Dreams (BYD) está instalando uma fábrica no município de Camaçari, na região metropolitana de Salvador foi comunicado na manhã desta segunda-feira (23) à empresa e ao Jinjiang Group, uma das empreiteiras contratadas para realizar a obra. Os resgatados permanecem nos alojamentos, mas não poderão trabalhar e terão seus contratos de trabalho rescindidos.
Os alojamentos e os locais da obra embargados também permanecerão sem atividades até a completa regularização junto aos órgãos que compõem a força-tarefa. A força-tarefa responsável pelas inspeções e pelos desdobramentos dessa ação é composta pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), pela Defensoria Pública da União (DPU) e pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), além do Ministério Público Federal (MPF) e da Polícia Federal (PF).
Uma audiência virtual conjunta do MPT e do MTE foi marcada para dia 26 (quinta-feira) à tarde para que a BYD e a Jinjang apresentem as providências necessárias à garantia das condições mínimas de alojamento e também para que sejam negociadas as condições para a regularização geral do que já foi detectado. A inspeção, no entanto, ainda prosseguirá com análise de documentos solicitados e não está descartada a necessidade de novas inspeções in loco.
Durante a série de fiscalizações, iniciada em meados de novembro e que seguirão nos próximos dias, foram identificados 163 trabalhadores em condições análogas à escravidão na empresa terceirizada Jinjang, prestadora de serviços para a BYD. Estes trabalhadores encontravam-se distribuídos em quatro alojamentos principais, sendo dois localizados na Rua Colorado e dois na Rua Umbus, no município de Camaçari. Um quinto alojamento, destinado a trabalhadores de funções administrativas, também foi fiscalizado, mas, apesar de identificadas algumas irregularidades, não foi caso de resgate de trabalhadores.
As condições encontradas nos alojamentos revelaram um quadro alarmante de precariedade e degradância. No primeiro alojamento da Rua Colorado, os trabalhadores dormiam em camas sem colchões, não possuíam armários para seus pertences pessoais, que ficavam misturados com materiais de alimentação. A situação sanitária era especialmente crítica, com apenas um banheiro para cada 31 trabalhadores, forçando-os a acordar às 4h para formar fila e conseguir se preparar para sair ao trabalho às 5h30.
O segundo alojamento na Rua Colorado, destinado principalmente aos soldadores, apresentava condições similarmente precárias. Embora houvesse um material sobre as camas, estes eram na verdade apenas revestimentos de 3cm de espessura, insuficientes para proporcionar condições mínimas de uso, sendo que algumas camas sequer contavam com esse revestimento.
Todos os alojamentos compartilhavam problemas graves de infraestrutura e higiene. Os banheiros, além de insuficientes, não eram separados por sexo, não possuíam assentos sanitários adequados e apresentavam condições precárias de higiene. A ausência de local apropriado para lavagem de roupas levava os trabalhadores a utilizar os próprios banheiros para esta finalidade.
A situação em algumas das áreas de alimentação era igualmente precária. As cozinhas funcionavam em condições alarmantes, sem armários adequados para armazenamento de alimentos. Em um caso particularmente grave, foram encontrados materiais de construção civil próximos aos alimentos, e alimentos armazenados próximos a banheiros em condições insalubres. Apenas um dos alojamentos possuía um refeitório improvisado, com bancos e mesas de madeira em área semicoberta, ainda assim insuficiente para todos os trabalhadores, forçando a maioria a realizar suas refeições nas próprias camas.
Em um dos quartos, ocupado por uma cozinheira, foram encontradas panelas com alimentos preparados deixadas abertas no chão, expostas a sujeira e sem refrigeração, para serem servidas no dia seguinte. Os trabalhadores consumiam água diretamente da torneira, sem tratamento, inclusive levando-a em garrafas para o local de trabalho.
As condições no canteiro de obras também revelaram graves irregularidades. O refeitório no local de trabalho utilizava coolers para servir as refeições, sem garantir condições mínimas de higiene. Os banheiros químicos, apenas oito para aproximadamente 600 trabalhadores, encontravam-se em estado deplorável, sem papel higiênico, água ou manutenção adequada, além de não respeitarem as distâncias mínimas estabelecidas por norma.
Os trabalhadores estavam expostos a intensa radiação solar, apresentando sinais visíveis de danos à pele. Foram registrados diversos acidentes de trabalho, incluindo um caso em que o trabalhador, devido à privação de sono causada pelas condições inadequadas de alojamento e longas jornadas, sofreu um acidente. Outro caso grave envolveu um trabalhador que sofreu lesão ocular em abril e, apesar de solicitar atendimento oftalmológico, nunca recebeu o devido acompanhamento médico.
A obra apresentava múltiplas irregularidades relacionadas ao ambiente de trabalho, levando ao embargo das atividades de escavações profundas e à interdição parcial de estabelecimento, especificamente da cozinha de um dos alojamentos na Rua Colorado. Uma serra circular de bancada também foi interditada por não possuir qualquer medida de segurança.
Salários não pagos, retenção de passaportes e horas de trabalho exaustivas
Além das condições degradantes, a situação caracteriza trabalho forçado, devido a diversos indicadores constatados durante as inspeções: os trabalhadores eram obrigados a pagar caução, tinham 60% de seus salários retidos (recebendo apenas 40% em moeda chinesa), enfrentavam ônus excessivo para rescisão contratual e tinham seus passaportes retidos pela empresa. A rescisão antecipada do contrato implicava na perda da caução e dos valores retidos, além da obrigação de custear a passagem de volta e restituir o valor da passagem de ida.
Para se ter uma ideia, caso um trabalhador tentasse rescindir o contrato de trabalho após seis meses, deixaria o país sem receber efetivamente nada pelo seu trabalho, já que o desconto da caução, da passagem de vinda ao Brasil e o pagamento da passagem de retorno, na prática, configuraria confisco total dos valores recebidos pelos trabalhadores ao longo da relação de trabalho.
A jornada de trabalho, a seu turno, já estava fixada no contrato em dez horas diárias, o que era agravado pela ausência de concessão regular das folgas previstas no instrumento. Foi identificado um trabalhador vítima de acidente de trabalho que estava há 25 dias sem folga. Esse trabalhador relatou cansaço e sonolência no momento do acidente, demonstrando que as longas jornadas e as condições de alojamento, que impedem o descanso, foram fatores cruciais para o acidente.
Fonte: CUT