Imersa em acirrado jogo de forças, perspectiva de imunização segue instável e cenário movediço estimula “corrida maluca”
Ao apresentar formalmente, nesta quarta-feira (16), o plano nacional de vacinação contra a covid-19, a gestão Bolsonaro anunciou uma previsão de imunização de 51 milhões de pessoas na primeira etapa do processo no país. Essa fase inicial deve consumir um total de 108,3 milhões de doses, uma vez que cada pessoa toma duas doses e se calcula uma perda de 5% do total por conta de eventuais problemas de logística e aplicação.
O calendário da gestão projeta um percurso de 16 meses de vacinação, sendo os quatro primeiros para os grupos prioritários e os demais para o restante da população. O escopo é o mesmo já apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF) e não prevê data para se iniciar a imunização.
“O que faltou? Faltou vacina, o cronograma pra gente saber quanto temos de vacina comprada, quanto temos de garantia pra entrega agora, a partir de janeiro, fevereiro, março, abril, maio, qual é o cronograma pra vacinação”, disse o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), logo após o anúncio.
A alegação do Ministério da Saúde (MS) é de que será necessário aguardar o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para validar as vacinas que vierem a ser utilizadas no país. O Brasil tem atualmente quatro substâncias em fase de testes clínicos no território nacional. Estão sendo avaliadas a chinesa CoronaVac, a vacina de Oxford/AstraZeneca, o imunizante da Pfizer e o da Janssen, mas ainda não há pedidos formais de registro junto à Anvisa.
Atual presidente do Consórcio Nordeste e responsável pela parte de vacinas do Fórum Nacional dos Governadores, Wellington Dias disse, também nesta quarta, que estados e municípios vêm empreendendo esforços para assegurar a realização da vacinação quando se tiver um imunizante.
“Estamos nos colocando prontos pra garantir, em cerca 35 mil a 50 mil postos de vacinação, vacina em todo o Brasil, mas agora precisamos, pra fazer o plano de qualificação, garantir esse cronograma”, afirmou, ao reforçar a cobrança por datas específicas de aplicação do químico.
Contexto
O coro de Dias é uma das principais expressões da batalha política que vem sendo travada em torno da vacina. O conflito tem diferentes elementos. Em primeiro plano, está a pressão de gestores locais sobre o governo Bolsonaro para pedir agilidade no passo a passo administrativo e político relacionado à imunização.
No pano de fundo dessa disputa estão, entre outras coisas, as intensas rixas entre o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Enquanto o primeiro chegou a afirmar, em outubro, que a vacinação em São Paulo seria de cunho obrigatório, o segundo entoa o mantra do caráter não compulsório da prática, inflamando o discurso anticiência da extrema direita e de seus apoiadores – a controvérsia, inclusive, começa a ser julgada pelo STF nesta quarta (16).
O conflito em torno da vacina tem ainda outros contornos, incluindo a pressão econômica e popular por celeridade no processo de vacinação e a marcha rumo às eleições presidenciais de 2022. Provável concorrente de Bolsonaro no pleito, o governador de São Paulo tem utilizado a vacina contra a covid como trampolim político para tentar alçar voo rumo ao Palácio do Planalto. Ele anunciou para janeiro a aplicação da vacina CoronaVac na população de São Paulo, mesmo sem uma anuência definitiva da Anvisa para a droga.
E a disputa entre os dois políticos não se dá sem afetações aos demais entes federados: a largada precoce de Doria na questão da imunização atiçou os ânimos entre o paulista e os outros governadores, que se veem em meio a uma turbulência.
Enquanto são cobrados pela população para agilizar o processo de vacinação, os mandatários travam uma batalha contra as resistências da gestão Bolsonaro diante do tema, cobram uma organização efetiva do cronograma de vacinação por parte do governo federal e atuam contra as tentativas de aparelhamento da Anvisa. O órgão está tomado por militares indicados pelo presidente da República para controlar a política de vacinas.
A via crucis política dos governadores é endossada ainda pela demora no aval a ser dado pela Anvisa para os imunizantes cujas pesquisas tenham atestado segurança e eficácia contra a doença. A instabilidade do cenário tem provocado uma verdadeira marcha semanal de governadores e prefeitos a Brasília para pressionar o governo a apressar a política de vacinação.
Entre reuniões e manifestações oficiais, o Consórcio Nordeste, o Fórum Nacional dos Governadores e a Frente Nacional de Prefeitos cobram não só velocidade no calendário de vacinação, mas também uma coordenação federal no tema.
“Corrida maluca”
O cenário movediço e o conjunto das incertezas em torno da vacina levaram uma massa de gestores locais a procurarem o Instituto Butantan para negociar diretamente com a entidade a compra de imunizantes. Os mandatários tentam se descolar da gestão Bolsonaro no sentido de assegurar a chegada futura de uma vacina às suas bases.
Na ultima quinta (10), o Butantan informou que já havia recebido pedidos de 276 cidades e 11 estados interessados na Coronavac, que vem sendo desenvolvida em parceria com o laboratório chinês Sinovac. “Essa divisão de Brasil com vacina e Brasil sem vacina, essa corrida maluca é que precisa ter um freio de arrumação imediato para que se coloque ordem na casa”, disse na ultima segunda-feira (14) o governador de Goiás, Ronaldo Caiado.
A argumentação do mandatário, bem como dos demais governadores, é de que a Política Nacional de Imunização (PNI), conforme sugere o nome, é federal e, portanto, deve ser conduzida pelo Ministério da Saúde. Essa leitura rechaça, em tese, a possibilidade de um ente federado largar na frente com a oferta de uma vacina, como tem feito Doria em São Paulo.
Judiciário
Provocado por diferentes atores políticos, o Judiciário também entrou no tema, atuando na questão em diferentes vias. Uma delas, já mencionada, é a avaliação da obrigatoriedade da vacinação. A Corte aprecia atualmente três ações judiciais que discutem o assunto. Duas delas questionam se autoridades públicas podem estipular a imposição da imunização e a outra debate se as famílias podem abrir mão da vacinação por conta de “convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais”.
Paralelamente, o ministro Ricardo Lewandowski determinou, na ultima segunda (14), que o MS apresentasse dentro de 48 horas as datas das diferentes etapas do plano de vacinação. Ao entregar o documento à Corte, o governo inseriu assinaturas de especialistas que depois disseram não ter visto a versão final do plano, o que gerou uma avalanche de críticas à gestão. A iniciativa rendeu ainda uma chuva de postagens nas redes sociais com a hashtag “#Bolsonaro171”, uma referência ao artigo do crime de estelionato, previsto no Código Penal.
Entidades científicas também se somam ao coro de críticas à gestão. Na terça (15), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) disse, em carta enviada ao STF, que o plano do governo é “equivocado”. Os especialistas apontam falta de diálogo do poder público com o grupo e ainda a necessidade de um detalhamento não apresentado pela gestão para esse roteiro de vacinação.
Legislativo
O conflito em torno da questão da vacina conta também com diferentes movimentações de parlamentares no sentido de buscar medidas alternativas ao controle do governo federal para garantir a imunização. Diante das desconfianças políticas em relação à Anvisa e ao governo Bolsonaro, deputados de oposição propõem a facilitação dos processos administrativos referentes a imunizantes.
O Projeto de Lei (PL) 5017/2020, por exemplo, do deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), prevê um fundo nacional de vacina para estados e municípios. A ideia é que eles possam comprar imunizantes por iniciativa própria, desde que a droga tenha carimbo da Anvisa ou aval de autoridades estrangeiras.
Outra proposta, batizada de “PL 5413/2020”, prevê o fim da obrigação de anuência da Anvisa para importação de vacinas já chanceladas em cinco pontos do globo – Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Canadá e União Europeia. A medida é assinada pelos deputados Nilto Tatto (PT-SP) e Arlindo Chinaglia (PT-SP).
Na terça-feira (15), a bancada do Psol protocolou requerimento para a criação de uma comissão externa da Câmara dos Deputados. O objetivo é acompanhar as ações do Executivo relacionadas ao plano de vacinação. Os psolistas também apresentaram projeto para criar um comitê gestor interinstitucional do plano, congregando o MS, o Congresso, o STF, a Anvisa, estados, municípios, instituições de pesquisa e a Secretaria Especial da Saúde Indígena.
Fonte: Brasil de Fato