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“Há uma ‘inversão de prioridades’”

""No dia 10 de dezembro é comemorado o Dia Internacional dos Direitos Humanos. A data foi instituída em 1950, quando o mundo ainda sentia os efeitos da 2º Grande Guerra, mas ainda hoje temos muito que avançar na garantia dos direitos básicos dos brasileiros. Por isto conversamos com o professor de Direito da Uesb e diretor ADUSB, Claudio Carvalho. Confira.


O Brasil possui hoje a quarta maior população carcerária do mundo, com mais de 607 mil presos. Isso se reflete na superlotação das prisões, que fere os direitos à integridade física e moral dos detentos. Quais seriam as possíveis soluções para que este cenário seja revertido?

É preciso destacar que existe uma “seletividade” do sistema carcerário no Brasil. As condenações por crimes praticados por pessoas pertencentes à alta classe da sociedade, tais como crimes financeiros, lavagem de dinheiro, sonegação etc, são insignificantes. Os pobres continuam sendo o alvo preferencial. Outra questão é que existe um equívoco sobre a política de “guerra as drogas” no tocante ao usuário, sem a garantia constitucional da inviolabilidade de sua vida privada e de sua intimidade, aumentando o encarceramento.  Ante a crise do sistema penitenciário, temos algumas tendências como a supressão ou diminuição dos direitos penais públicos subjetivos de liberdade dos delinquentes e a substituição do sistema penal por instâncias de soluções de conflitos de maneira que possam ser atendidos os interesses dos envolvidos, tendo em vista que, o sistema penal causa sofrimentos desnecessários, é socialmente injusto, é de difícil controle e não apresenta resultados positivos.

 

Em relação à violência de gênero, o Sr. considera que o Congresso têm trabalhado a favor da criação de leis que defendam as mulheres?

Pouco. Avançamos com o Congresso aprovando o PL que considera o feminicídio como crime qualificado e o debate sobre o PL 7371/2014 (o projeto está pronto para ser votado na Câmara) que propõe a criação de um Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Segundo o texto, os recursos viriam tanto do orçamento da União quanto de doações de entidades e empresas interessadas em contribuir e seriam empregados em ações como a criação de mais Delegacias da Mulher e de varas especiais na Justiça, além de na contratação de profissionais para o atendimento às vítimas. Retrocedemos com a agenda conservadora do PL 5069/2013, de autoria do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). O texto prevê, entre outras questões, a obrigação de exame de corpo de delito para comprovar a violência sexual sofrida pela vítima em decorrência do estupro (hoje, o testemunho da pessoa no serviço de saúde é suficiente para o procedimento). Outro PL conservador é o 6583/2013, cria o Estatuto da Família, que define como família apenas como o núcleo formado pela união entre homem e mulher e seus descendentes. O texto exclui qualquer outro arranjo familiar de direitos garantidos pelo estado, como saúde, alimentação, educação e cidadania. Esse PL’s indicam que demandas mais progressistas do movimento feminista não terão espaço na atual legislatura em que a mulher é sub-representada e o patriarcado enraizado e é reproduzido no congresso por indivíduos, notadamente homens

 

De acordo com o Mapa da Violência de 2012, 56.000 pessoas foram assassinadas no Brasil, sendo 30.000 jovens entre 15 a 29 anos. Desse total, 77% são negros. A que o Sr. acha que isso pode ser atribuído?

Existe uma opção da sociedade brasileira por um modelo de desenvolvimento opressor, não sustentável e violento, com o quase abandono de políticas estruturantes de democratização da terra/território e dos bens comuns. O extermínio da juventude negra, a crescente violência contra a população transexual, os linchamentos públicos, a violência policial, legitimam um processo de extermínio das pessoas que “não são reclamadas” e que podem ser “eliminadas”.  Da Chacina ocorrida aqui na nossa cidade nos bairros Alto da Conquista e Alto da Colina em 2010, em que onze pessoas morreram e três desapareceram até a chacina do Cabula em Salvador no ano passado, que deixou 12 mortos e cinco feridos (todos com idade entre 16 e 26 anos) e nos dois casos por tiros da polícia, deixa claro quem é o “inimigo” na nossa sociedade.  De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 11.197 pessoas foram mortas pela polícia brasileira nos últimos cinco anos. A PM da Bahia ocupa o terceiro lugar neste ranking, com ao menos 234 mortes causadas em "confronto" em 2013. É preciso combater o racismo e o colonialismo da nossa sociedade.

 

Como o Sr. avalia as políticas e projetos em defesa dos indígenas no Brasil?

Desde 1967, Fundação Nacional do Índio (FUNAI) é o órgão responsável pela promoção e proteção aos povos indígenas, em todo território brasileiro. O Estatuto do Índio (Lei No. 6.001) aprovado em 1973, e ainda vigente, afirma as premissas da defesa. Com as mobilizações indígenas, a Constituição de 1988 acabou por conferir um tratamento fundamental aos povos indígenas. Foi reconhecido seu direito à diferença (Art. 231). Foi garantido o usufruto exclusivo de seus territórios tradicionalmente ocupados, definidos a partir de seus usos, costumes e tradições (Art. 231). A União foi instituída definitivamente como instância privilegiada das relações entre os índios e a sociedade nacional. Através do artigo 232, os indígenas e suas organizações foram reconhecidos como partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos. Em 2002, a ratificação pelo governo brasileiro da Convenção No. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas consolidou a sustentação jurídica. Estas vitórias constitucionais, entretanto, estão ameaçadas politicamente em função dos ataques de um Congresso Nacional conservador. Basicamente temos três frentes de ataque: 1. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, em tramitação na Câmara dos Deputados, retira do Presidente da República a competência pela demarcação de terras indígenas, transferindo-a ao Congresso Nacional; 2. O novo Código da Mineração, em discussão na Câmara dos Deputados, pretende substituir o decreto-lei 227, de 1967, que atualmente regula a atividade. Existe a proposta de mineração de terra indígena; 3. O PL 7.735 de 2014 que pretende substituir a Medida Provisória 2.186-16/2001, que regula atualmente o uso comercial do patrimônio genético. O PL simplifica a legislação sobre o uso da biodiversidade. Se faz necessário o fortalecimento da política de proteção indígena.

 

O direito de livre expressão é desrespeitado constantemente nos protestos da população, a exemplo dos estudantes que lutavam pacificamente contra a reorganização das escolas em São Paulo. Como o Sr. avalia as medidas que o Estado tem adotado para coibir as manifestações?

No cenário atual, o Estado tenta “definir”, o espaço público como negação do espaço da política. A rua definitivamente é colocada passiva de controle e com formação de territórios absolutamente vigiados e imposição de normas ferindo direitos e formas de expressão. Desapropriam cidadãos e os desproveem de qualquer possibilidade de participação e de decisão. O Estado não pode ver a população que protesta como criminosa; em uma democracia, o ir e vir, o debate, o discurso e os anseios populares não apenas devem ser ouvidos, mas concretizados. Há uma “inversão de prioridades” em que manter a “ordem” seria mais importante a que o exercício da liberdade. E existe todo um conjunto de discursos justificadores, no caso dos/das secundaristas de São Paulo, houve a tentativa clássica de chamar as ocupações de invasões na tentativa de estabelecer a ilegalidade permanente do movimento. Em um cenário de grandes violações de direitos, é necessário reafirmar o compromisso com a defesa e proteção daquelas e daqueles que lutam pelos Direitos no Brasil.

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