Jorge Oliveira, ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência, apontou ‘comprometimento da segurança militar’ e plenário do tribunal rejeitou a ideia
Indicado ao TCU (Tribunal de Contas da União) por Jair Bolsonaro, de quem foi auxiliar direto dentro do Palácio do Planalto, o ministro Jorge Oliveira atuou para barrar uma proposta que destinaria a civis com Covid-19 pelo menos 50% dos leitos ociosos em hospitais militares. Oliveira enxergou “comprometimento da segurança militar” caso a ideia fosse levada adiante.
O TCU investiga possíveis irregularidades por parte de Ministério da Defesa, Exército, Aeronáutica e Marinha ao não ofertarem a civis leitos destinados a pacientes com Covid-19 em unidades militares de saúde. Segundo uma auditoria do tribunal, pelo menos R$ 2 bilhões do Orçamento da União de 2020 foram destinados a esses hospitais.
Em uma decisão cautelar, referendada em plenário, o TCU determinou que o ministério e os comandos das Forças abrissem os dados sobre ocupação dos leitos reservados aos militares. Depois de mais de um ano de pandemia, esses dados se tornaram públicos, em cumprimento à decisão do tribunal.
A Folha revelou na terça-feira (6) que as planilhas mostram um bloqueio de leitos à espera de militares em enfermarias e UTIs e que há unidades com até 85% de vagas ociosas. As principais disponibilidades são de leitos clínicos. As UTIs passam por superlotação, mas, mesmo assim, também há vagas disponíveis, conforme os dados sistematizados.
No TCU, foi o ministro Vital do Rêgo quem propôs a destinação ao SUS de pelo menos 50% dos leitos disponíveis para Covid-19 nos hospitais militares.
A votação ocorreu no último dia 24. Naquele momento, Ministério da Defesa e Forças Armadas seguiam ocultando os dados sobre leitos disponíveis. A pasta havia pedido mais dez dias para sistematizar as planilhas.
Segundo um voto em separado de Vital, a destinação a civis de metade das vagas ociosas levaria em conta os números a serem apurados nos cinco dias seguintes, “considerando as demandas estaduais e municipais por necessidade de atendimento médico-hospitalar”.
O ministro afirmou, em plenário, que tinha o apoio do relator do processo, ministro Benjamin Zymler, ausente da sessão. Foi Zymler quem obrigou, de forma cautelar, as Forças a abrirem os dados sobre ocupação de leitos.
“Nesse momento, dada a gravidade e cruel crise sanitária no país, não podemos deixar de sopesar os princípios constitucionais de maior relevância, como o direito à vida, o acesso universal ao serviço de saúde e a dignidade humana”, justificou Vital ao votar. “Os leitos estão absolutamente cheios em todo o país, e as Forças Armadas deixam uma reserva estratégica [exclusiva para militares]?”
O ministro propôs atendimento aos civis, por meio do SUS, onde houvesse “uma cama, um respirador” disponível em hospitais militares.
Oliveira, que chegou ao TCU por indicação de Bolsonaro, afirmou em seguida ter sido procurado pelo ministro da Defesa –general Fernando Azevedo e Silva, demitido do cargo menos de uma semana depois– para que interviesse por mais prazo para os comandos abrirem os dados sobre ocupação de leitos.
Oliveira discordou e criticou a proposta de seu colega de tribunal. “As unidades de saúde atendem não só os militares, mas seus familiares. Eles contribuem para um fundo de saúde. Determinar que as unidades disponibilizem 50% de sua capacidade ociosa pode trazer transtornos de várias ordens”, afirmou.
Entre os transtornos citados por Oliveira estão um “comprometimento da segurança militar” e também um prejuízo no apoio dado a militares que “estão trabalhando em condições adversas”. “Não se trata de privilégio. O militar não é pior ou melhor do que ninguém, apenas desenvolve uma atividade diferenciada.”
O ministro sugeriu, então, que a proposta de determinação de compartilhamento de leitos com o SUS fosse substituída por um pedido de diagnóstico ao Ministério da Defesa.
O ministro Bruno Dantas sugeriu que houvesse requisição de dados sobre a reserva técnica feita para militares nos últimos 24 meses, o que subsidiaria uma cautelar futura no sentido de compartilhamento de leitos com o SUS.
E assim foi feito. O acórdão aprovado pelo plenário determinou a abertura em dez dias dos dados de ocupação nos hospitais militares, a necessidade de informar quantos leitos clínicos e de UTI poderiam ser destinados a civis e o fornecimento de um histórico de informações dos últimos 24 meses.
Naquele dia, o Brasil superava 300 mil mortes por Covid-19, após registrar recorde de mais de 3.000 mortes por dia. Agora, já são mais de 4.000 óbitos diários. E segue o colapso das redes públicas de saúde.
Oliveira foi ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República até ser indicado por Bolsonaro ao TCU no fim do ano passado. Ele é policial militar aposentado e amigo do presidente e dos filhos. O pai do ministro trabalhou no gabinete de Bolsonaro na Câmara por mais de 20 anos.
A abertura dos dados pelas Forças Armadas mostrou que a Aeronáutica tem 14 unidades de saúde com leitos reservados a pacientes com Covid-19. Em quase todas não há vagas em UTIs, que estão lotadas, conforme dados atualizados na segunda-feira (5). Há uma exceção: a UTI do Hospital de Aeronáutica de Recife, que tem leitos disponíveis.
A realidade é distinta em relação aos leitos de enfermaria para Covid-19. Das 27 unidades de saúde, apenas três tinham enfermarias com 100% de ocupação. Em outras seis, o índice era de 50% ou menos.
Já o Exército não divulgou taxas de ocupação apenas para os leitos de Covid-19, mas de forma geral. Segundo a Força, 23 unidades de saúde têm 366 leitos para internação de pacientes infectados pelo novo coronavírus. Em 14 delas, a ocupação geral era de 50% ou menos.
A maior ociosidade, segundo planilha do Exército publicada na terça (6), está no Hospital de Guarnição de Florianópolis (ocupação de 13%) e no Hospital Geral de Curitiba (19%).
No caso das UTIs, há um cenário de superlotação. No Hospital de Guarnição de Marabá, havia duas vagas que estavam livres, segundo o Exército. No Hospital Militar de Área de Manaus, a ocupação geral era de 33%; havia seis leitos ativos para pacientes com Covid-19. E no Hospital de Guarnição de Porto Velho, havia quatro vagas, todas livres.
No HFA, quase todos os 40 leitos de UTI estão ocupados com pacientes com Covid-19. Já os leitos de enfermaria tinham ocupação de 57,1%, segundo atualização feita pelo hospital na terça (6).
A Marinha, por sua vez, tinha apenas um leito clínico disponível no Hospital Naval de Natal e um leito no Hospital Naval de Recife. Não havia vagas de UTI.
Na terça, a DPU (Defensoria Pública da União) ingressou com uma ação na Justiça Federal em que pede a participação de três hospitais militares de Brasília no sistema do SUS, com oferta de leitos de enfermaria e UTI na pandemia, se houver disponibilidade. São eles: HFA, Hospital da Força Aérea em Brasília e Hospital Naval da Marinha.
Após a publicação da reportagem pela Folha, a bancada do PSOL na Câmara pediu à PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão), vinculada à PGR (Procuradoria-Geral da República), que adote providências para que o caso seja investigado e para que os leitos reservados a militares sejam destinados a civis, em caso de ociosidade.
O deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) ingressou com uma ação popular na Justiça Federal em Brasília para que o Ministério da Defesa seja obrigado a destinar leitos ociosos a civis.
Em nota, o ministério disse ter fornecido todos os dados ao TCU, a partir da determinação feita. “Os hospitais militares estão com número limitado de leitos, assim como os hospitais públicos.”
O percentual de militares da ativa infectados pelo novo coronavírus, por estarem na linha de frente, supera 13%, valor superior à média nacional, conforme a nota.
“Esse número elevado, somado à grande quantidade de dependentes, militares da reserva, reformados e pensionistas, normalmente de idade bastante avançada, que são atendidos por lei, tem mantido o sistema de saúde das Forças e hospitais militares no limite de suas capacidades, como no restante do país”, afirmou a Defesa.
Fonte: Folha de São Paulo