As reformas chinesas de socialismo de mercado, a rigor, não são uma invenção chinesa. A Nova Política Econômica – NEP da Rússia revolucionária de 1918 – foi a resposta de Lenin e de outros marxistas russos à situação de um socialismo num país atrasado. Sob comando do Estado passou a haver uma dualidade de modos de produção: o socialista (através de instrumentos econômicos estatais, como bancos e empresas industriais e comerciais) e o capitalista (através do mercado e de empresas de propriedade privada).
Essa foi a segunda grande surpresa relacionada com o deslocamento do epicentro da luta de classes dos países capitalistas de forças produtivas desenvolvidas para países capitalistas e não capitalistas pouco desenvolvidos, como decorrência da Primeira Guerra Mundial. Sob a égide da NEP, nas novas repúblicas soviéticas continuaram existindo e se desenvolvendo formas próprias do modo capitalista de produção (mercado, trabalho assalariado, valor, lucro…) em combinação e em atrito com novas formas sociais de produção (empresas de propriedade estatal e empresas de propriedade social, assim como uma orientação geral do Estado).
A cooperação e a luta entre as duas formas deveria, por um lado, desenvolver e esgotar as potencialidades do modo de produção capitalista e, por outro, desenvolver as potencialidades do modo de produção socialista no rumo do comunismo. Além disso, para evitar que fosse necessário reinventar a roda, a NEP buscou importar capitais estrangeiros de modo a absorver tecnologias e ampliar a produção industrial. O bloqueio econômico, politico e militar das potências capitalistas, porém, não permitiu que essa importação fosse realizada na escala pretendida, ficando restrita a alguns poucos capitalistas que se aventuraram a investir no território da URSS.
Em tais condições, o crescimento industrial soviético avançou lentamente durante os anos 1920, e se tornou um ponto fraco para o desenvolvimento social e para a defesa externa do país. Quando ficaram evidentes os indícios de uma nova crise capitalista mundial, a emergência do fascismo e do nazismo, e a possibilidade do território soviético se tornar o principal objeto de uma nova guerra mundial, a URSS foi colocada diante de um impasse. Ou seu Estado empreendia uma industrialização acelerada e massiva, incluindo a indústria de base e a produção de armamentos, ou a sobrevivência do novo sistema social e político dificilmente seria assegurada.
Essa dicotomia levou, no final daquela década, à adoção de uma série de medidas para acelerar a industrialização. O planejamento macro e micro, em substituição à NEP, passou a ser centralizado pelo Estado. As terras individuais do campesinato foram reunidas em grandes cooperativas ou propriedades coletivas (kolkoses) e a produção agrícola passou a ser operada em grande parte por empresas estatais de máquinas e tratores (sovkoses), de modo a elevar a produtividade e liberar grande parte da mão-de-obra agrícola para o emprego na indústria. Além disso, a produção de bens de consumo foi contigenciada em favor da produção de bens de produção e armamentos.
Essas decisões mostraram-se adequadas quando a guerra de defesa contra a agressão nazista se tornou uma trágica realidade. Se não houvessem sido adotadas, a URSS não teria suportado o impacto da invasão nazista, nem teria tido condições de exercer papel chave nos resultados da Segunda Guerra Mundial. Por outro lado, o sucesso desse processo de industrialização e do confronto bélico fez os soviéticos suporem que o caminho de transição socialista era exatamente o que haviam trilhado.
Isto é, economia estatista, macro e micro, tanto na produção quanto na circulação e na distribuição, com ausência de mercado e de concorrência. Tal crença foi reforçada por dois outros fatores do período: Guerra Fria e movimentos revolucionários em várias partes do mundo. O estatismo econômico e político foi ainda mais exacerbado à medida que a URSS teve que se empenhar na corrida armamentista contra as ameaças bélicas capitalistas e em que os movimentos revolucionários em quase todos os continentes confirmavam a continuidade da transferência do epicentro da luta de classes dos países capitalistas desenvolvidos ou centrais para os países atrasados.
As guerras nacionais de resistência contra a expansão alemã na Europa haviam desembocado tanto em regimes de democracia popular em países do leste europeu (Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Albânia e Alemanha Oriental) quanto em Estados de Bem Estar Social na Europa Ocidental. E, na Ásia, várias das guerras de resistência contra a invasão japonesa transformaram-se em guerras revolucionárias internas e na implantação de regimes de democracia popular ou socialistas, a exemplo da China, Coréia do Norte e, mais tarde, Vietnã.
Todos esses regimes tomaram o modelo soviético como exemplo de desenvolvimento econômico e social, embora quase imediatamente tal modelo tenha passado a apresentar problemas de diferentes tipos, inclusive na URSS. Todos eles confrontaram-se, cada vez mais, com baixa produtividade, desbalanceamento entre os departamentos de bens de produção e de bens de consumo, e gargalos na circulação das mercadorias e no consumo popular, levando a diferentes reações.
Os iugoslavos apelaram para a autonomia empresarial. Os chineses para um equilíbrio mais intenso entre agricultura e indústria e entre indústria pesada e indústria leve e, mais tarde, para o “grande salto adiante” e para a “revolução cultural proletária”. Os próprios soviéticos deram marcha à ré na coletivização agrícola e propuseram uma revisão total no modelo. Mas nenhum deles, nesse período, atacou a ausência do mercado e de sua concorrência como um empecilho ao desenvolvimento das forças produtivas e ao atendimento das demandas de consumo de suas populações.
De qualquer modo, tornou-se evidente que as transições socialistas dos países capitalistas atrasados teriam que ser não só radicalmente diferentes da transição socialista dos países capitalistas avançados, mas diferentes entre si. A tese marxista clássica de que nenhuma formação social perece e dá lugar a uma nova formação antes de desenvolver todas as suas potencialidades voltara a emergir com força, colocando problemas inesperados para os que haviam revolucionado países capitalistas atrasados.
Na China, em especial, a “revolução cultural” serviu para derrotar todas as ideias de que bastaria a vontade popular para desenvolver as forças produtivas e criar as condições para a passagem ao comunismo. E o exame crítico de seus resultados, entre 1976 e 1978, levou à conclusão de que o socialismo, como transição, só pode se desenvolver através de reformas sucessivas nas relações entre Estado e mercado, entre formas capitalistas e formas sociais, entre trabalho vivo e trabalho morto, e entre propriedade privada e propriedade social. E que as reformas econômicas precisam demonstrar efetividade em benefício da maioria do povo, de modo a propiciar uma base segura para as reformas políticas de melhoria nas condições de vida e ampliação dos direitos democráticos.
Na URSS, entre 1984 e 1991, ao invés de reconhecerem que o país havia submergido numa séria crise de depressão econômica, incapaz de atender às necessidades básicas de consumo da população e de retomar o processo de desenvolvimento, seus dirigentes não tomaram as reformas econômicas (perestroika) como base para as reformas políticas e sociais (glasnost). Misturaram as prioridades, não tomaram medidas para impedir o assalto privado às empresas estatais, foram incapazes de impedir a submissão do Estado ao mercado capitalista caótico e afundaram a URSS como país socialista.
No Vietnã, por outro lado, a partir de 1985 foram adotadas reformas no sentido de tomar o mercado como forma de incentivar a concorrência e realizar o desenvolvimento econômico e social. Em Cuba tal processo de reformas teve início apenas em 2008. Em termos gerais, as reformas direcionadas a desenvolver o socialismo em países historicamente atrasados do ponto de vista capitalista, em acordo com a teoria dos clássicos do marxismo, só parecem possíveis onde o Estado (governo, burocracia estatal, legislativo, judiciário, forças armadas) possui uma orientação socialista hegemônica e entende o mercado como um instrumento historicamente necessário para desenvolver as forças produtivas (trabalhadores, educação, ciências, tecnologias, indústria, agricultura, comunicações etc.).
Em qualquer dos casos a disputa ideológica e política é constante. Há sempre pressão para ampliar a presença do mercado sob a alegação de que as estatais são burocráticas e lentas. Isto pode até ser verdade, mas a lentidão e a burocracia das estatais só podem ser modificadas através da concorrência entre elas, entre elas e as empresas privadas, e pela ação reguladora, orientadora e disciplinadora do Estado. Se não for assim, o mercado tende a mostrar sua tendência caótica, a corrupção (um dos maiores perigos onde o mercado está presente) pode se tornar endêmica, e a disputa entre os dois modos de produção pode ser resolvida a favor do capitalismo, como ocorreu na URSS.
Outra tendência comum nesse processo é a de alcançar o pleno emprego da força de trabalho. Isso talvez só seja praticável em países onde tal força de trabalho é relativamente reduzida e, mesmo assim, enquanto as forças produtivas não tiverem alcançado o ponto científico e tecnológico em que o trabalho vivo tem condições de ser substituído plenamente pelo trabalho morto. Em virtude disso, para evitar a tendência de queda da produtividade, será preciso tratar o desemprego com uma série de medidas que ajudem tanto a rotatividade da força de trabalho quanto a vida criativa dos desempregados.
Dizendo de outro modo, em relação ao emprego será necessário levar em conta que a tendência do desenvolvimento científico e tecnológico das forças produtivas consiste em fazer com que a força humana seja inexoravelmente substituída pela força mecânica combinada com os cérebros eletrônicos programados ou artificiais. No capitalismo avançado essa tendência leva à criação de uma crescente massa humana sem opções de emprego. No socialismo, porém, será necessário combinar diferentes tipos de seguro desemprego e/ou de renda mínima com atividades educativas de reciclagem profissional, técnica e científica e/ou atividades comunitárias, preparando as condições para uma sociedade em que o trabalho deixa de ser uma necessidade de sobrevivência e se mantém unicamente como uma necessidade para a evolução da espécie humana.
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Fonte: Correio da Cidadania