Artigo da advogada e professora do curso de Direito da Uesb, Luciana Santos Silva, originalmente divulgado no blog Justiça no Interior
Não pretendo, no presente escrito, discorrer sobre a sentença que absolveu André Aranha da acusação pelo crime de estupro de vulnerável. Minha perspectiva de analise visa problematizar a condenação de Mariana Ferrer. O Brasil está no 5º lugar dos países que mais matam mulheres no mundo no contexto de violência doméstica segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). À par das cifras ocultas, a violência doméstica e intrafamiliar com a mulher no país é alarmante.
Essa triste realidade é sustentada pela cultura patriarcal que reifica e inferioriza tudo o que é ligado ao feminino. A violência contra os corpos das mulheres (lesões corporais, estupros, feminicídios etc.) é precedida por uma outra violência: o machismo estrutural. Somos violentadas quando sofremos agressões físicas, mas também quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) identifica que mulheres ganham menos do que os homens em todas as ocupações selecionadas na pesquisa; quando somos sub representadas na política, na cúpula do Poder Judiciário e nas nossas entidades de classe mesmo quando somos maioria na base.
É nesse cenário que o campo jurídico está inserido podendo referendar posições machistas ou superá-las. No caso de Mariana Ferrer prevaleceu a primeira opção. Na sessão de audiência a posição processual de Mariana Ferrer foi invertida. De vítima ela passou a ser acusada e, ato contínuo, condenada pelo advogado de André Aranha sob o referendo silencioso das demais autoridades presentes no ato.
A inversão dos pólos processais e a estigmatização da vítima nos crimes de violência contra a mulher, é uma expressão do machismo na medida em que o comportamento feminino passa a ser o centro do julgamento. Em 2019 foi amplamente divulgado a absolvição do crime de estupro de vulnerável em que um motorista de aplicativo era acusado. Em seu voto a desembargadora relatora, Cristina Pereira Gonzales, afirma que “se a ofendida bebeu por conta própria, dentro de seu livre arbítrio, não pode ela ser colocada na posição de vítima de abuso sexual pelo simples fato de ter bebido”¹. Assim como no caso de Mariana Ferrer os argumentos esposados julgam e condenam o comportamento social da vítima invisibilizando a conduta criminosa objeto e razão de existência do processo. A análise dos elementos típicos do crime de estupro cede lugar ao debate sobre o comportamento da vítima, a roupa que usava e o local em que estava.
A expressão de machismo no campo jurídico não é um fenômeno restrito aos dois casos citados. O direito penal até o ano de 2005 tratava o crime de estupro como crimes contra os costumes e a condição da vítima enquanto mulher honesta era requisito de tipificação de algumas infrações. Os movimentos feministas, importante registrar, atuaram e atuam de forma coordenada denunciando as expressões de patriarcalismo na lei, doutrina e na atuação prática do campo jurídico forçando mudanças em prol da igualdade entre mulheres e homens.
A cultura machista impõe um lugar social de subalternidade e silenciamento para o feminino. A audiência do caso Mariana Ferrer se constituiu em verdadeira violência institucional ferindo o dever de tutela da dignidade humana pelo campo jurídico. A inversão dos papéis vítima/acusado fortalece o medo das mulheres formalizarem denúncias favorecendo a impunidade e, em última instância, a cultura do estupro. Se a culpa é da vítima, o recado é: pode estuprar. É pela construção da igualdade de gênero que precisamos falar sobre machismo no Direito!
Luciana Santos Silva é advogada militante em Vitória da Conquista, Conselheira Seccional da OAB/BA, feminista, professora do curso de direito da UESB e doutora pela PUC/SP.
¹Motorista de aplicativo condenado por estupro de passageira embriagada é absolvido por falta de provas no RS (https://extra.globo.com/noticias/brasil/motorista-de-aplicativo-condenado-por-estupro-de-passageira-embriagada-absolvido-por-falta-de-provas-no-rs-23848793.html).