Confira o artigo do mestre em Ciências da Comunicação, bancário da CEF/Candeias e delegado sindical, Carlos Nascimento, sobre a cultura do machismo e da violência de gênero no país.
Quando aguardava pelo nascimento de minha primeira filha, um amigo, pai de uma recém-nascida, perguntou: “E aí? É homem ou mulher?”. Respondi que seria uma menina e, de imediato, recebi um tapa nas costas acompanhado de uma profecia em tom jocoso: “Pois é. Vamos pagar por todas as misérias que fizemos com as filhas desses sujeitos por aí!”. Um pouco assustado com a sentença, retruquei dizendo que não me recordava de já ter violentado alguém e que, o pouco que havia “aprontado” na vida, o fizera de comum acordo com as “aprontandas”. Logo, quando chegasse a vez de minha filha namorar, que o fizesse em paz e com a alma leve. Afinal, sexo é bom, e assim deve ser para todos.
Sempre que faço esta reflexão, penso na aceitação do papel do macho como violador. É ele, varão, o responsável pelo deflorar da mulher, importando pouco o desejo e o prazer da fêmea vitimada. Este mesmo homem, que entende poder transgredir a idealizada inocência feminina, tem também a obrigação de proteger e castrar a sexualidade de suas herdeiras. Causa e efeito do medo que forja o imaginário masculino.
Quando tratamos de estupro, vale pensar nesta expressão como algo que transcende o ato físico. É bom lembrar que, invasões ao direito e a privacidade das mulheres estão presentes em atitudes diversas e permanecem a se alojar nos mais corriqueiros costumes, absorvidos e repassados também por estas, uma vez que educadas a partir de conceitos machistas, entendidos e aceitos como normatizadores sociais. (In)consciência coletiva que se projeta em irrupções que vão para além das relações genitais, pois, o ato e o discurso estuprador legitimam a imagem do homem frente a uma sociedade patriarcal e reacionária.
Visível consequência disto aparece no questionamento normalmente feito pela sociedade quanto à inocência da mulher vítima de violência sexual. A atitude sensual, a forma de vestir, a exposição a lugares impróprios ou o “pecado” de gostar de sexo são usualmente colocados como atributos culposos a esta. Forma disfarçada, mas consciente, de manutenção do discurso estuprador.
A feminista negra (e negra) Djamila Ribeiro descreve com propriedade como o domínio do Estado (machista) sobre o corpo da mulher é determinante para esta cultura. Em Quem tem medo do feminismo negro? (Companhia das Letras, 2018), relata, através da crítica a fatos cotidianos, como a manutenção destes (pré)conceitos permanece viva e impregnada no dia-a-dia das pessoas. Em particular, discorre sobre posição da mulher negra, tratada como subumana, disposta à sociedade e ao mercado de trabalho como serviçal doméstica e sexual. Pior dos reflexos do escravagismo que ainda não se desprendeu de nossa formação. Tudo isso é violência, é invasão, é estupro.
Em tempos recentes, um deputado federal declarou em público a quem preferia (ou não) estuprar. Escolha honrosamente negada à colega de plenário a quem entendia estar ofendendo. Além de imperdoável, sua afirmação reflete (e incentiva) a ideia de que o estupro é um direito legítimo do homem.
Pensamento não diferente do explicitado na postura do ministro da Economia que, ao defender a retomada da CPMF afirmou que: se esta for “pequenininha, não machuca”. Seu “humor” exemplifica o como estas expressões machistas estão encrustadas em nossa cultura, sendo corriqueiramente usadas sem qualquer preocupação semântica. Talvez importe lembrar ao ministro que, em uma relação entre iguais (democrática), o penetrar, seja do tributo grande ou do pênis pequeno, deve ser negociado, não imposto.
Na contramão destes discursos, a paulista Ana Cañas canta seu sexo explícito de forma violenta. Uma poesia carnal, agressiva e necessária. Que ofende homens e assusta mulheres, justamente por fazer o caminho inverso, violentando o universo machista que não aceita este direito quando posto à voz feminina.
Sabe-se que, muitas das músicas que fazem sucesso nas rádios e na internet, descrevem mulheres sexualizadas e submissas, convocadas a “sentar”, “chupar”, “ajoelhar”, “rebolar”, mas nunca a gozar. O ato estuprador não é entendido como parte da natureza feminina e, por isso mesmo, a arte de Cañas é fundamental ao Brasil de hoje.
Em campo distinto, mas em reflexão análoga, o escritor e psicanalista Contardo Calligaris descreve o Brasil como um lugar eternamente disposto ao estupro. Em seu livro Hello Brasil (Editora Escuta, 1991), analisa a relação dos colonizadores portugueses com esta terra prometida e disposta à exploração eterna. Calada, pronta ao deleite de seu conquistador, ela não tem o direito de reação e é desprezada como uma prostituta, sob os bravios de “este país não presta”.
Trazer as percepções de Calligaris a este escrito se faz importante, pois demonstra o quanto o patriarcado, o falo que fala, naturaliza a violação da terra e da sociedade. Por isso mesmo, sua comparação com a violação da mulher reforça a indissociabilidade entre o feminismo e a política. Reivindicar o direito ao sexo e ao corpo (ridículo ainda se falar nisso em pleno século XXI), se estende para além de questões de gênero. A inviolabilidade do corpo feminino é um marco fundamental para o entendimento de que o Estado (não macho) deve o mesmo respeito a todos, e que a construção de uma sociedade democrática passa pela percepção da igualdade nas diferenças.
Retomando o diálogo motivador deste texto, não é direito de homem algum infringir “misérias” à mulher ou a quem quer que seja. O corpo feminino não está disposto à violação inconsentida, assim como o povo deste país não deve estar exposto às estocadas a ele deferidas sob o pretexto de um bem maior. Em ambos os casos, corpos e vidas são invadidas, e os resultados desta “relação” apontam sempre para um gozo unilateral e explícito, mas muitas vezes distante da percepção geral de suas vítimas.
As opiniões expressas não refletem, necessariamente, o posicionamento da diretoria do SEEB/VCR.