Nesta edição, nós conversamos com o advogado e historiador Ruy Medeiros, que traçou um panorama sobre o atual cenário político brasileiro.
O acórdão de partidos ideologicamente diversos, baseados na troca de cargos, pode dar certo? Quem tem sido favorecido por essa governabilidade?
O grande problema que se vê é a questão programática. O grande problema que se tem de início é exatamente a inexistência de um programa orquestrado entre todos os partidos da chamada base aliada. A base aliada não se compromete com princípios, com medidas, não tem uma política legislativa expressa, não firma prioridades. Por isso, a cada momento, quem está no governo tem que negociar pontualmente, e essa negociação pontual diante de uma pluralidade de partidos é difícil. Geralmente, quem governa fica submetido a chantagens, pressões e barganhas. A segunda questão diz respeito ao perfil exato daqueles que devem compor uma base aliada, de direita ou de esquerda. O problema hoje é exatamente o esvaimento de qualquer programa. Na verdade, se faz o programa para ganhar eleição, e não um programa para se governar com o consenso de partidos. Além disso, deve-se levar em consideração que, quando surge qualquer crise na base aliada ou qualquer detecção de pessoas importantes dentro dessa base, o apelo que se faz é o apelo pela troca, pela compensação, pelo cargo ou determinada liberação de verbas. Não se faz nenhum apelo ao movimento organizado dentro da sociedade ou mesmo pela população. Isso faz com que todo e qualquer governo fique refém de partidos que têm uma expressão maior dentro do Congresso Nacional.
O governo atual concretamente apresentou um programa para ganhar eleição e está formulando outro programa para governar, e um programa para governar à direita. É um programa que anuncia corte de direitos previdenciários, uma limitação de direitos trabalhistas e, com isso, também, o arrocho fiscal. Nós estamos diante de opções chamadas técnicas, não opções de caráter político, negociadas pela sociedade. Estamos no reino da autoridade, que discute sem ouvir a sociedade, somente a partir do seu ministério que é fortemente à direita.
Hoje é possível identificar o crescimento da direita no país?
É um pouco complexo, porque existem os movimentos sociais fortemente atrelados, centrais sindicais que se moldam à estrutura do governo, movimentos financiados por instâncias governamentais, e com isso há um silêncio das bases e da sociedade. Às vezes, quando a sociedade se pronuncia, como nos movimentos de julho de 2013, é grandemente despolitizado. Algumas reivindicações que eram sentidas pediam o afastamento de partidos políticos na manifestação, quando ela pretendia ser despolitizada. Aquilo mostrava uma grande limitação do movimento. Não se podia entender aquilo como uma virada à esquerda de setores da sociedade brasileira. Há um movimento de reflexão dentro de grupos minoritários da esquerda, e um movimento muito difuso, de perplexidade, dentro de partidos que se reivindicavam da direita, mas que, à medida que participam do poder, fazem negociações tendentes à sua permanência e negociação quanto ao programa.
Mas, à medida que a crise se acentua, nenhum programa pode ser costurado com a sociedade do ponto de vista do governo, que pretende costurá-lo somente com os partidos políticos. É evidente que a solução passa a ser conservadora, e soluções como as que estão sendo anunciadas, ao invés de serem soluções políticas, poderiam atender o mínimo de reivindicações desses partidos da base aliada, que ainda se reivindicam como partidos de esquerda.
Esta problematização tem a ver com a postura do governo, onde o mesmo partido está no poder há cerca de uma década?
A questão que se põe não é tanto de alternância do poder. Esse discurso de alternância, que foi levantado especialmente por setores mais à direita, inclusive pela extrema direita, não é exatamente a questão central. A questão central é com quem governa, com que programa se governa e como se mobiliza a sociedade.
É evidente que o PT não tem interesse em mobilizar a sociedade. Ele governa hoje com setores que envolvem pessoas bastante conservadoras, com um programa que se está anunciando também muito conservador, e sem nenhuma vontade de mobilizar quem quer que seja.
Às vezes as pessoas dizem que quando o partido mobiliza a sociedade está se tratando de um perfil populista, mas na verdade não há nenhuma grande democratização que não esteja fundada nos setores da sociedade que reivindicam mudanças. Então o grande problema é esse. Isso extrapola aquilo que é pretensão do governo e do poder como um todo.
Aconteceram avanços sociais que podem ser duradouros ou apenas maquiagens para manutenção de uma política de favorecimento dos grandes grupos econômicos?
Eu não diria que são medidas puramente eleitoreiras. Elas expressam pequenas reformas para a pacificação subordinada da sociedade. Uma coisa é você pensar que as medidas eleitoreiras só são medidas eleitoreiras fora de um contexto maior, que é a própria domesticação do movimento social e a necessidade de conter protestos e reivindicações mais radicais.
Com relação aos meios de comunicação, este governo teve a oportunidade de fazer alterações e implementar uma maior participação popular através da TV Digital, rádios comunitárias e educativas e, mesmo uma redistribuição das verbas públicas para o setor, e quase nada foi feito. O governo aceita ser refém da mídia?
Na verdade parece que o governo quer ser refém. Quando foram criadas as rádios comunitárias havia uma grande esperança de democratização dos meios de comunicação. Essas rádios, entretanto, foram disputadas e preferencialmente concedidas a grupos vinculados a determinados grupos religiosos, fora do espírito da própria legislação, que era de dar voz à sociedade. Quando uma rádio comunitária expressa opiniões, qualquer movimento pode reivindicar que seja transmitido um pensamento contrário ao adotado pela rádio. No entanto, você não vê isso.
Apesar das críticas sobre privatizações, as parcerias público-privadas desse governo foram na prática medidas neoliberais. Portos e aeroportos agora são privados. Mudou o partido ou mudou o mundo?
Trata-se da entrega da exploração de setores à iniciativa privada, não há nenhuma diferença do ponto de vista de qualidade nem do ponto de vista de forma ou conteúdo. Podemos dizer que hoje a incidência maior é naquele que diz respeito à prestação de serviços públicos, não à atuação direta na atividade econômica de transformação. Não é uma atuação direta como aconteceu na Vale do Rio Doce, por exemplo.
Dilma anunciou a abertura do capital da CEF, banco totalmente público que destina toda atenção aos programas sociais do governo e concentra o FGTS, que pertence ao trabalhador. Qual a implicação dessa abertura para a população, já que o banco será “saneado” para dar lucro?
O que se está percebendo é que as atitudes do governo terminarão por corroer sua relação com setores da sociedade, dentro da base aliada, e dentro do próprio PT. Recentemente houve aquela entrevista bombástica de Marta Suplicy ao Estado de São Paulo, onde se nota um descontentamento muito grande, uma cisão dentro do PT, e fica cada vez mais evidente uma compartimentação de um programa usado eleitoralmente diferente dos propósitos programáticos dentro da administração. Essa corrosão de relações dos movimentos organizados e dentro dos próprios partidos, parecem ser um dado imediato da consequência dessa política que está sendo implementada pelo partido e pelo governo. Não podemos falar apenas do PT, pois há uma prática que envolve diversos partidos. Mas como eu disse antes, em situações desiguais, de acordo com o seu peso, e sem programa prévio.
A não existência de um programa prévio, e se levar em consideração o peso dos partidos, não elimina o papel de partícipes do poder. E eles estando juntos ao PT e ao PMDB, que são os majoritários, eles estarão juntos à medida que a erosão de relações não estabeleça um nível mais aprofundado. Há grupos que convivem com movimentos sociais, e uma erosão do governo, da política governamental junto aos movimentos sociais, repercutirá bastante nesses partidos que tem se referenciado bastante nesses movimentos.
Desde o governo Lula, a maioria dos sindicatos, associações de trabalhadores e centrais sindicais tem prestado apoio às medidas do governo, nomeando sindicalistas para ministério, e em vários cargos públicos de confiança. Com isso, os trabalhadores perderam suas lideranças e há bastante tempo não temos manifestações, mesmo com os prejuízos da manutenção do fator previdenciário, juros altos, entre outros. Nas manifestações de junho de 2013 não havia sindicalistas. Onde estão, e para onde devem ir essas entidades dos trabalhadores nesse cenário atual?
Você tem uma realidade hoje em que o maior percentual de assessores de nível superior no estado brasileiro é formado por sindicalistas ou ex-sindicalistas. O governo optou por uma cooptação do movimento sindical. O movimento sindical não é revolucionário, ele para na negociação, que pode ser vantajosa ou não. Tem-se percebido, por exemplo, um nível de judicialização dos conflitos trabalhistas coletivos bem menor. Já houve também um número de greves muito maior, mas isso não expressa que houve uma participação maior dos trabalhadores.
A participação do movimento sindical e das centrais sindicais junto ao governo não teve a consequência de ser uma participação de trabalhadores. É exatamente isso que tende a colocar os trabalhadores fora desse guarda-chuva sindical, à medida que o governo vai adotando políticas públicas conservadoras e aponta para uma legislação de supressão de direitos.
Hoje é possível identificar um conforto nos líderes sindicais por essa aproximação com o governo. Isso influencia na redução do número de greves e de manifestações dos trabalhadores em busca de melhorias?
Sim, não se pode negar o impacto das lideranças junto aos movimentos. Mas se convive hoje também com o crescimento da extrema direita. Aqueles setores que se diziam de centro-direita estão migrando para posições direitistas e ultradireitistas. Isso é um perigo muito grande para o movimento social desmobilizado. Se você tem um movimento social mobilizado, com um índice de autenticidade maior, ele é capaz de contrabalançar ou deter todo esse movimento de direita e extrema direita que está crescendo em nosso país, e que inclusive controlou a mídia. Você lê hoje a Folha de São Paulo, e ela não é a mesma de 10 ou 20 anos atrás. Hoje é um jornal comprometido com essa direita no Brasil.
Com relação às denúncias de corrupção desde o Mensalão do governo Lula e o escândalo da Petrobrás, será que este governo resolveu seguir as mesmas regras que existiam antes, na época de Collor e Sarney, por exemplo?
Creio que a postura seja a mesma. Quando dizemos que a corrupção sempre existiu e que a corrupção é a marca do poder burguês, isso não significa absolvição. Os atos de corrupção existiram e continuam a existir e são igualmente danosos ao patrimônio público. Significa, inclusive, que se está tirando da população aquilo que poderia ser entregue como serviços e direitos sociais.
Nos governos Lula/Dilma os banqueiros tiveram os maiores lucros da história. Isso deve continuar?
Acredito que sim. O capital especulativo continuará tendo um espaço muito grande dentro do governo, e as medidas anunciadas não são capazes de tocar nos lucros dos grandes bancos. Eles cresceram, houve um momento de diminuição de juros, mas à medida que o governo adotou outros instrumentos compensatórios, como o de financiamentos, renúncia fiscal, induzindo ao consumo, os bancos puderam compensar fortemente isso com empréstimos, investimentos,
E qual a responsabilidade dos políticos da região, que fazem parte da base aliada? A quem eles devem atender: aos partidos ou aos trabalhadores?
O PT é um partido de nível nacional, organizado nacionalmente. Os outros partidos da base aliada de Dilma, dos governos estaduais e municipais, também têm um conteúdo nacional. Eles fazem a mediação de uma atuação nacional com as peculiaridades locais e regionais. Não se pode deixar de considerar esses aspectos. Como o local pouco tem preponderado na política brasileira, tem havido uma compensação por parte de governos locais, no sentido de tentar desenvolver mais a prestação de serviços sociais. Alguns governos têm apresentado aquilo que eles consideram avanços na saúde, na educação, em empregos, mas isso não significa que eles estejam se afastando de um perfil nacional desses partidos. Para sobreviver, todos esses governos necessitam de dar satisfação à população, à sociedade local. Para isso, levando em consideração as pressões que sofrem da oposição, necessitam dessas considerações e peculiaridades de caráter local.