Fernando Gatti, 44, revê o primeiro ano de pandemia e diz que as fake news só atrasam o combate à doença no país
Fernando Gatti, 44, olha para 2020 e só vê pânico, choro e muito desgaste. Na linha de frente contra a Covid-19, o infectologista do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, foi o responsável por diagnosticar e tratar o primeiro brasileiro infectado pelo coronavírus.
Depois desse paciente, que no dia 25 de fevereiro deu entrada no hospital com sintomas característicos de Covid-19 após viagem para a Itália, Gatti não descansou mais, teve burnout e não viu o único filho, de três anos, crescer no último ano.
Essa é a realidade da maioria dos profissionais da saúde que batalham para conter o avanço da doença que já ceifou quase 250 mil vidas no Brasil.
À Folha o infectologista diz que o coronavírus sempre estará entre nós com suas variantes e que, para contê-lo, será preciso antes minar as fake news que estimulam, por exemplo, o uso do chamado kit Covid, com medicamentos sem eficácia para a doença, como cloroquina e ivermectina.
Para Gatti, o que salva não é o “tratamento precoce”, mas, sim, a assistência precoce. “No momento da suspeita diagnóstica, o paciente precisa procurar o quanto antes assistência médica de referência ou especialista relacionado à infecção do Sars-Cov-2, que basicamente acomete o pulmão. A partir daí, o médico estabelece junto com o paciente a melhor forma de acompanhamento.”
Já vacinado contra a Covid-19, o médico faz um exercício de futurologia sobre o Brasil e diz ter esperança de que a vacina, apesar dos problemas de gestão na imunização, fará com que a vida como um dia conhecemos volte –nem que seja aos poucos.
Como foi diagnosticar o primeiro caso de Covid-19 no Brasil?
No dia 25 de fevereiro [de 2020], o paciente [um homem de 61 anos] deu entrada no hospital. Ele tinha acabado de chegar da Itália e estava com sintomas respiratórios. Um colega entrou em contato comigo para saber se deveria colher ou não o PCR dele, uma vez que pessoas vindas da Itália ainda não estavam no grupo obrigatório para o teste. A gente decidiu por fazer o exame e, naquela noite mesmo, o resultado deu positivo. No dia seguinte, a amostra foi encaminhada para o Instituto Adolfo Lutz para confirmação.
O paciente foi internado após o resultado positivo?
Ele apresentava sintomas como resfriado, uma tosse discreta com nariz escorrendo, mas sem febre, boa pressão arterial e saturação de oxigênio normal. Com isso, ele não foi internado de imediato. O critério de internação é sempre clínico. E, sob esse aspecto, ele estava bem.
Como ele recebeu o diagnóstico?
A reação inicial dele foi de espanto, mas ele achava que poderia acontecer porque na cidade italiana onde ele passou havia casos. Ele chegou ao pronto-atendimento com sintomas respiratórios e até nos ajudou ao pedir ele mesmo o teste para Covid-19.
Se ele não foi internado, como funcionou o atendimento naquela ocasião, quando havia pouca informação sobre o coronavírus?
Eu falava com ele três vezes ao dia por telefone para explicar o que deveria ser feito. E ele estava muito abalado porque via as reportagens na TV e as pessoas diziam que era para ele estar internado. As orientações de isolamento foram passadas. Ele ficou muito chateado com algumas reportagens que fizeram sensacionalismo do caso dele. Eu dizia: ‘Fique tranquilo porque você é o primeiro caso no Brasil, vai ficar famoso’. Eu brincava muito com ele.
Como ele está hoje após um ano do teste positivo para a Covid-19?
Ele está bem e sem sequelas. Ele teve um acometimento de via aérea e depois evoluiu para uma pneumonia bacteriana, o que é uma complicação que ocorre em ao menos 30% dos pacientes que tiveram a infecção por Covid-19. Daí, por causa disso, ele precisou se internar.
Quanto tempo durou a internação?
Ele se internou em 2 de março [de 2020] e ficou seis dias no Einstein para tratar dessa pneumonia bacteriana. Eu montei um esquema no hospital, comuniquei o pronto-atendimento e usamos uma ambulância própria para trazê-lo até o hospital para ele não se expor.
Naquela ocasião, o Einstein já estava preparado para receber pacientes com Covid-19?
Desde fevereiro [de 2020] já tínhamos estabelecido um protocolo para os profissionais que fossem atender os pacientes com suspeita de Sars-Cov-2 a usarem máscara N95, avental e luva. Tanto que quando a gente fez a notificação do caso positivo, no dia 26, um dia depois a vigilância veio nos visitar para saber se a gente estava seguindo as normas de prevenção, e o que eles falaram é que estávamos agindo acima do recomendado.
A sua carga de trabalho aumentou na pandemia?
Eu trabalhava 60 horas semanais. A pandemia elevou a minha jornada para 80 horas nos sete dias da semana. Eu estava conseguindo reduzir a carga para 70 horas, mas, por causa dessa segunda onda de casos, o ritmo de trabalho voltou a aumentar.
E qual foi o resultado dessa jornada exaustiva de trabalho?
Em março [de 2020] eu tive burnout e fiquei de licença por dez dias. Passei por um psiquiatra, tomei antidepressivo e só não fiz terapia por falta de tempo. Eu chorei em vários momentos porque a quantidade de trabalho era tanta que eu tinha dúvida sobre se seria capaz de dar conta. Foi quando eu passei a dizer não para pacientes, amigos e conhecidos que vinham pedir ajuda. Simplesmente porque eu estava muito esgotado. Foi bem difícil e ainda é.
E como ficou a sua vida pessoal nesta época?
Eu sou casado também com uma médica. Ela é cardiologista e trabalhou por três meses na UTI Covid do Hospital das Clínicas da USP. Com essa grande quantidade de trabalho, tudo se desorganizou na nossa vida. É muita energia que a gente cede para cuidar do paciente e de seus familiares. A Covid é uma doença que se expande pela família, e isso desgasta. Chegávamos em casa e não tínhamos força para brincar com o nosso filho, de três anos. Mas felizmente nenhum de nós foi infectado até aqui.
Foi um ano, então, que você não viu seu filho crescer?
Basicamente isso. Eu tentei me esforçar para ficar o máximo que eu pude com ele, mas realmente eu queria ter dado mais, ter ficado mais com ele.
Você perdeu algum paciente para a Covid-19?
Infelizmente foram dois óbitos. Fiquei frustrado e pensando no que eu deveria ter feito a mais, se faltou alguma coisa porque uma doença nova dessa com tantas informações inadequadas circulando e tanta insegurança deixa uma dúvida: será que eu fiz tudo o que era possível?
As fake news sobre a pandemia têm dificultado o seu trabalho?
As fake news e qualquer tipo de divulgação de tratamento sem comprovação científica acabam atrapalhando porque muitas vezes a pessoa demora para buscar o atendimento, fica satisfeita com aquilo que acha que é certo e aí a gente não tem como fazer uma avaliação da progressão da doença. Muitas vezes, as pessoas tomam medicamentos sem saber dos efeitos colaterais. É perigoso fazer isso sem acompanhamento.
Seus pacientes são pessoas da classe A e B e com acesso vasto à informação. Eles acreditam, por exemplo, na eficácia do ‘kit Covid’?
Já aconteceu de eu fazer a consulta e explicar a falta de evidência do ‘kit Covid’ [que inclui remédios como azitromicina, ivermectina e hidroxicloroquina], e o paciente continuar tomando independentemente do que eu explicava. Alguns pacientes insistem em usar, talvez porque acreditam que funciona como uma fórmula mágica.
Já receitou cloroquina aos seus pacientes?
Não.
Para os seus pacientes, quem é o responsável pelas mortes por Covid-19 no Brasil?
Os pacientes que tiveram uma evolução mais grave de internação em terapia intensiva têm raiva da China. Eu não ouvi nada até agora relacionado ao governo Bolsonaro [sem partido]. Para eles, a China destruiu vidas no mundo todo.
Você recebeu um grande fluxo de pacientes contaminados pelo coronavírus após as festas de fim de ano?Sim. Eu trabalhei nos dias 31 e 1º de janeiro atendendo familiares de pacientes por causa do Natal e do Ano-Novo. Atendi, por exemplo, três famílias na virada do ano desesperadas com o diagnóstico positivo depois de aglomerarem nas confraternizações.
Como você vê as aglomerações de pessoas nas praias e em festas clandestinas apesar do repique de casos de Covid-19 pelo país?
Eu vejo os dois lados: primeiro é uma pandemia que está durando muito tempo. As pessoas realmente estão esgotadas das recomendações de não fazer aglomeração. Eu entendo esse lado. A questão é que é uma doença que a gente tem pouco recurso de tratamento e, além disso, falta hospital para atender. Aglomeração é a pior coisa que a gente pode imaginar numa pandemia de vírus respiratório. O que eu quero dizer é que eu até entendo que as pessoas tenham liberado geral porque não aguentam mais tanto tempo por desespero, mas a gente vai pagar um preço por isso.
O que tem gerado essa negação da realidade em parte da sociedade?
Tudo é reflexo da insegurança de uma doença nova, de várias opiniões e de você ter inicialmente algumas publicações científicas dizendo uma coisa que acaba não sendo comprovada num estudo seguinte. Essa insegurança acabou criando esse ‘flá-flu’ de pessoas que defendem umas terapias e outras não. O que as pessoas precisam é ter por perto um especialista para medir a gravidade do quadro de Covid-19 e evitar a automedicação. Quem salva não é o tratamento precoce, mas a assistência precoce.
O que seria a assistência precoce?
No momento da suspeita diagnóstica, o paciente precisa procurar o quanto antes assistência médica de referência ou especialista relacionado à infecção do Sars-Cov-2, que basicamente acomete o pulmão. A partir daí, o médico estabelece junto com o paciente a melhor forma de acompanhamento.
Qual tratamento tem funcionado até agora?
O que a gente tem de comprovação é o uso de corticoide para pacientes que desenvolvem uma alteração da saturação de oxigênio. O medicamento controla a inflamação do organismo. Para pacientes que evoluem para uma alteração de alguns exames laboratoriais que sugerem um aumento de trombose, a gente administra uma profilaxia específica. E se há algumas imagens tomográficas em que você encontra sinais de uma infecção secundária bacteriana é possível administrar medicamento antimicrobiano.
A recomendação é monitorar a saturação e acompanhar o quadro com exames laboratoriais a cada cinco dias, além de realizar uma tomografia de tórax se houver sintoma respiratório, como tosse e falta de ar. Também é importante medir a porcentagem de acometimento do vírus no pulmão.
Em um exercício de futurologia, como você vê a pandemia de Covid-19 no Brasil nos próximos anos?
Eu acho que a infecção por esse vírus veio para ficar assim como a Influenza. O Sars-Cov-2 vai fazer parte do nosso calendário de vacinação. A gente vai ter que rever todo ano um esquema de vacina por causa das variantes do vírus que sofreram mutação, e a gente vai ter que preparar vacinas diferentes para poder combater isso. Não vai ter a mesma quantidade de pessoas infectadas como agora porque a gente terá outro nível de população exposta e já vacinada.
Um ano depois do burnout, o pânico ainda ronda seu horizonte?
Eu não estou mais na fase do pânico. Isso foi lá no começo. Acho que a gente aprendeu muito com essa doença e estamos aprendendo. É um momento de esperança pela chegada da vacina e o resultado que ela vai causar. A gente vê o desempenho de Israel, e o que eu tenho nutrido é esse sentimento de esperança, apesar de todos os nossos problemas.
RAIO-X
Fernando Gatti de Menezes, 44, é médico e coordena o serviço de controle de infecção hospitalar do Albert Einstein, em São Paulo, composto por oito profissionais da equipe de enfermagem e mais dois médicos. Formado há 21 anos, tem mestrado e doutorado em infectologia pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Fonte: Folha de São Paulo