Por Fabio Luis Barbosa dos Santos
A esquerda vive um dilema: reciclar o PT ou arriscar o novo? O PT é a aposta no mal menor, que será cada vez maior. Já o novo dá trabalho e os resultados demoram. Como em casamento que termina, haverá momentos de solidão e angústia, antes da luz. O primeiro destes momentos pode ser a eleição de 2018. Não seria melhor o velho companheiro, que há muito dorme com o inimigo mas ao menos o amansa? O que fazer? O rumo da esquerda depende das lições da derrota vivida. O ponto de partida deste balanço é entender o impeachment. Esta não é uma discussão retórica: a leitura que prevalecer fundamentará a política futura. Proponho sete hipóteses para contribuir com este debate.
- O PT é corresponsável pela situação que o traga. Não é o único responsável, mas também não é uma vítima.
E é corresponsável em todos os seus aspectos: por ter mantido intocado o poder das corporações de comunicação; por ter se incorporado e servido à lei de responsabilidade fiscal; por ter feito da política parlamentar a sua base, e nunca o povo, ou a esquerda. Inclusive, foi neste terreno que tentou negociar a sua salvação até o último momento, sempre na vil moeda da política mercantil.
- O golpe não significa uma mudança no sentido da história brasileira, mas aponta para uma aceleração no ritmo e no tempo da política prevalente.
É certo, como dizia o governo Dilma, que impeachment sem crime de responsabilidade é golpe. Porém, o golpe não foi provocado por diferenças substantivas de projeto. Foi no terreno da pequena política, que o PT comandou exitosamente por treze anos, que o jogo virou.
Não há dúvidas que o governo Temer é mais destrutivo que o anterior. Mas suas propostas não traduzem qualquer inflexão no sentido das políticas até então praticadas. Por exemplo: o congelamento dos gastos públicos por vinte anos radicaliza a lógica do ajuste estrutural, cultivada regiamente pelas gestões petistas. As continuidades são simbolizadas por Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central sob Lula.
Então porque o golpe?
O golpe foi precipitado pelo debilitamento da posição petista no lodaçal da política parlamentar, o que está associado ao esvaziamento da sua funcionalidade política. Esta funcionalidade foi descrita como o “modo lulista” de regulação do conflito social: modestíssimos ganhos para os mais pobres, articulados à intocabilidade do País como um negócio para o capital.
Este modo de regulação funcionou a contento durante o boom das commodities. Mas fez água diante da conjunção de escândalos políticos e crise econômica. Foi essa a lição que os de cima tiraram das jornadas de junho de 2013.
Em suma, o PT se tornou desnecessário para mediar o aprofundamento do neoliberalismo, ao qual jamais contrariou. E isso porque o campo popular se encontra apassivado e dividido após treze anos de presidência petista. E a mobilização maior passou para o outro lado.
- Após treze anos: qual o saldo da experiência petista? Avançamos e acumulamos força no campo popular? Respondo com uma terceira hipótese: as gestões petistas são corresponsáveis pelos retrocessos do presente, mas também do futuro.
Que critérios permitem avaliar se avançamos ou não? Se acumulamos força ou não?
Proponho dois critérios: 1) se o campo popular se fortaleceu; 2) se nos aproximamos de mudanças estruturais.
A política petista não fortaleceu o campo popular, mas o confundiu, o apassivou e o alienou. Confundiu, porque implementou um programa e práticas de direita, apresentando-se como esquerda. Apassivou, porque envolveu setores populares na gestão pública para neutralizá-los, e não para realizar suas demandas históricas. Alienou, porque promoveu o consumo como solução para os problemas sociais — uma via individual e não coletiva, que mercantiliza o que são direitos.
Quanto ao segundo critério: nos aproximamos de mudanças estruturais?
Entendo que nos afastamos, porque os avanços modestos e provisórios que podem ser apontados, corresponderam a uma deterioração do tecido social do país: uma economia mais desnacionalizada, menos industrializada, mais extrativista e mais dependente; uma sociedade em que o trabalho é mais precário, uma reforma agrária que retrocedeu, serviços públicos que se deterioraram e se mercantilizaram; uma política e uma sociedade a cada dia mais conservadoras e violentas.
Alguns dirão que estávamos melhor com o PT do que com o governo atual. No plano imediato, não há dúvida. Mas mais além do imediato, é preciso constatar que as gestões petistas alimentaram o que enfrentamos agora e enfrentaremos no futuro (os bancos, o agronegócio, a mídia corporativa, os partidos conservadores etc.). E ao mesmo tempo, nos debilitaram para enfrentar estes desafios. Por isso, é corresponsável pelos retrocessos do presente e do futuro.
- O PT se tornou um fator de imobilismo da política de esquerda no Brasil, que é preciso superar. É necessário valorizar a importância histórica do partido, como primeira expressão política autônoma dos trabalhadores brasileiros. Mas reconhecer o esvaziamento da sua razão de ser, a partir do momento em que sucumbiu à política convencional. E converteu-se no braço esquerdo do partido da ordem.
Esta autocrítica é fundamental na esquerda. Porque das lições que se tira da experiência recente, depende o alcance da política futura. Quem entende que o golpe foi movido por diferença de projeto, tem como horizonte o reestabelecimento da ordem petista. Os críticos desta ordem precisam dissecá-la impiedosamente, tirando as suas lições.
- Parte desta crítica envolve examinar a política regional brasileira. Então avanço uma quinta hipótese: as gestões petistas foram um freio da onda progressista sul-americana. Isso porque a sua política regional neutralizou, na prática, as iniciativas de potencial radical emanadas sobretudo da Venezuela. Alba, Telesur e o Banco do Sul teriam outro alcance com uma adesão brasileira.
E o Brasil não aderiu porque o projeto petista não tinha orientação contra-hegemônica. Ao contrário, a retórica integracionista disfarçava aspirações de liderança regional. Sob esta lógica, o bolivarianismo foi visto antes como um concorrente do que como um parceiro.
O cerne da política brasileira foi apoiar a internacionalização das chamadas “campeãs nacionais”, consolidando uma base material para projetar o país na política mundial: fazer do Brasil um global player. A integração foi instrumentalizada em favor de empresas como Odebrecht, JBS, Vale etc. Como são negócios baseados na superexploração do trabalho e na devastação dos recursos naturais, foi esta a lógica da integração liderada pelo Brasil, expressa de forma lapidar na IIRSA.
Por outro lado, a integração política foi subordinada ao desígnio brasileiro de atuar como um mediador regional: a esquerda responsável, que condena os excessos do chavismo e dialoga com a direita. Lembremos que a criação da Unasur foi um avanço, mas também uma forma de neutralizar a Alba.
- Há uma correspondência entre o alcance e os limites da onda progressista no plano nacional e a dinâmica da integração regional.
Qual foi o alcance? A mudança política se concretizou: para dar dois exemplos, o Pacto de Punto Fijo foi sepultado na Venezuela e a segregação dos indígenas da política boliviana foi ultrapassada.
Mas o limite desta mudança foi a continuidade macroeconômica: não se questionou o neoliberalismo. A única situação em que se tentou foi na Venezuela, refém do rentismo petroleiro.
O alcance e o limite da onda progressista encontra correspondência na dinâmica regional, em que a novidade política (a Unasul), se materializou nos marcos da continuidade econômica (a IIRSA).
- Qual a principal lição desta experiência histórica? As presidências petistas e a onda progressista sul-americana ilustram, com clareza cristalina, os limites para a reforma dentro da ordem na América Latina.
No plano doméstico, a mágica lulista pretendeu conciliar capital e trabalho: o limite aos avanços populares era o interesse do capital. De modo análogo pretendeu conciliar, no plano internacional, soberania e imperialismo: o limite da autonomia era o interesse dos Estados Unidos.
Porém, a fragilidade desta via ficou evidente. Afinal, em um País como o Brasil — ou em um continente como a América Latina —, há pouco que os trabalhadores tenham a ceder na relação com o capital, exceto o seu bem político mais precioso: a autonomia.
No Brasil, a crise do PT explicita os impasses do projeto que ele encarnou. O partido liderou a esquerda que apostou na mudança por dentro da ordem depois da ditadura: a reforma pela conciliação de classes. Por este caminho chegou à presidência, mas não mudou o Brasil. A lição é que, sem mexer nas estruturas nem comprar briga, é impossível mudar o País.
Para quem identifica o PT com a esquerda, a casa caiu. Mas já dizia Emicida: “sobre as chances, é bom vê-las: às vezes se perde o telhado para ganhar as estrelas”. É preciso deixar de lado o telhado, voltando a nos guiar pelas estrelas.
Fabio Luis Barbosa dos Santos é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); é autor de Além do PT, da editora Elefante, no qual se baseia este artigo.
Publicado pela Revista Caros Amigos, edição 248.