O debate suscitado na 24ª fase da Operação Lava Jato, se houve ou não abuso das autoridades – Polícia Federal, Ministério Público Federal, Judiciário Federal e Receita Federal – na condução coercitiva do ex-presidente da República para prestar depoimento, dia 4 de março, é evidentemente uma dúvida jurídica da maior relevância, não apenas no trato do caso específico do cidadão Lula, mas para esclarecer se o procedimento praticado anteriormente com outros cidadãos e cidadãs suspeitos, investigados e testemunhas seguiu ou não as normas legais vigentes no país.
A própria Lava Jato revelou que pelo menos 117 pessoas, inclusive grandes empresários, ricos e poderosos, foram conduzidas de forma coercitiva nas fases anteriores da operação sem que tenha havido o clamor social. Apenas os advogados de boa parte dos investigados protestaram contra o tal procedimento coercitivo, seguido ou não de prisão provisória e preventiva. Se agora se conclui que houve abuso em 4 de março, é preciso que a denúncia do abuso seja estendida para todos os casos anteriores com empreiteiros, doleiros e operadores do esquema Petrobrás.
Mais do que isso, é preciso denunciar o abuso das demais forças policiais do país, que cotidianamente obrigam os brasileiros considerados suspeitos nas periferias e nas comunidades (trabalhadores, estudantes, jovens negros etc.) a prestarem depoimentos coercitivamente nas delegacias de polícia, muitas vezes com consequência trágica, como a do pedreiro Amarildo, no Rio de Janeiro. É preciso denunciar o abuso policial contra milhares de cidadãos detidos nos protestos de 2013, nas manifestações contra a Copa em 2014 e nas lutas diárias dos movimentos sociais e populares mais combativos ao longo de 2015.
Pode ser que finalmente muita gente se deu conta de que isso é um abuso grave das autoridades, que excede a legislação em vigor, que ameaça a democracia e os direitos individuais e sociais, e que, portanto, não pode mais ser aceito nas investigações criminais. Se ficar comprovado o abuso, evidentemente a força-tarefa deve ser advertida pelas autoridades e ser impedida da prática da condução coercitiva para qualquer cidadão brasileiro, sem exceção. Será que o STF vai mesmo apresentar uma palavra definitiva a essa polêmica? Interessa ao governo que produziu uma “lei antiterrorismo” conter a sanha repressiva do Estado? Quem, entre as diferentes correntes de opinião na sociedade, alimenta a ilusão de que o aparelho de Estado que aí está seja capaz de promover a justiça, a igualdade e construir uma nação sem explorados nem exploradores?
De qualquer maneira, parece razoável entender que a razão do sistema de poder sobre essa questão segue os padrões do chamado “Estado Democrático de Direito”, conforme os interesses das classes dominantes. Isso implica refletir sobre alguns questionamentos: a comprovação do abuso vai invalidar o trabalho realizado pela Operação Lava Jato até agora? Vai reverter a situação a ponto de impedir a sua continuidade? Vai desmoralizar a força-tarefa de tal maneira que ela não tenha mais respaldo legal e social para concluir o que apurou? A Lava Jato terá o mesmo destino de outras tantas operações como a Satiagraha, Castelo de Areia, Opportunity, Banestado? Ou, ao contrário, o fato de a Lava Jato ter sido censurada pela condução coercitiva de Lula não altera em nada o processo em curso e o objeto das investigações?
FATO NOVO – Outra coisa que chama a atenção na 24ª fase da Lava Jato é saber exatamente por que o Lula não foi preso nem provisória nem preventivamente como tem acontecido, desde o início da operação, em 2014, com pessoas suspeitas de algum envolvimento no caso de desvio de recursos da Petrobras, que tem sido “oficialmente” declarado o fio condutor de todo esse processo.
Basta verificar que nas fases anteriores da Lava Jato inúmeros empresários, advogados, executivos, doleiros, operadores e beneficiados pelos desvios na Petrobras foram detidos com muita convicção pela força-tarefa, foram conduzidos coercitivamente para prestar depoimento e muitos tiveram suas prisões temporárias transformadas em preventivas, por tempo indeterminado – mesmo com todo o aparato jurídico utilizado pelos mais renomados escritórios de advocacia para livrar os seus preciosos clientes.
A operação seguiu firme e confiante para os indiciamentos e julgamentos, com dezenas de condenações nos diferentes regimes prisionais, atrás das grades ou domiciliar. Todas as condenações em segunda instância agora, após decisão do STF, deverão ser imediatamente cumpridas na cadeia, pelo menos inicialmente. Quem está protestando contra esse processo Brasil afora? Aparentemente, só os advogados dos réus e os setores diretamente afetados pelas ações da força-tarefa, além de áreas do governo que falam da importância das empresas envolvidas no assalto à Petrobras para o desenvolvimento econômico do país.
Entre os partidos políticos o PT é o que mais protesta, reclama de perseguição institucional e pessoal da força-tarefa, embora tenha menor número de filiados indiciados do que o PP de Paulo Maluf e o PMDB de Michel Temer, Renan Calheiros, Edson Lobão etc. Até agora o STF aceitou uma única denúncia com base nas investigações da Operação Lava Jato: a do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, do PMDB. Acontece que os partidos tradicionais tratam as denúncias como fatos de envolvimento individual de seus membros, que cada um deve pagar por conta própria, de maneira que a estrutura partidária não chega a ser tão abalada.
Evidentemente, a forte reação do PT tem a ver com o enorme desgaste que a Operação Lava Jato tem causado ao governo Dilma Rousseff, já enfraquecido pela prolongada e profunda crise econômica; com o desmonte de um suposto esquema de financiamento do partido em conluio com as empreiteiras que desviaram recursos da Petrobras, via marqueteiros eleitorais; e, principalmente, porque as ações da força-tarefa direcionaram seu foco em cima da maior liderança do partido, acusado de ter sido beneficiado pessoalmente pelos desvios de recursos das empreiteiras na Petrobras. O foco das investigações no PT atinge também o conjunto das forças de esquerda, na medida inclusive que são colocadas na defensiva e ficam impactadas diante do peso das denúncias na sociedade.
Então, por que Lula não foi preso no dia 4 de março?
Numa primeira hipótese, pode-se considerar que a Operação Lava Jato ainda não tem provas e nem mesmo a convicção de que as suspeitas contra o ex-presidente, tanto nas delações feitas até agora como em toda a documentação analisada pela força-tarefa, tenham fundamento criminal. Neste caso, a verificação dos recursos doados ao Instituto Lula e as obras no sítio de Atibaia e no apartamento do Guarujá, por empresas comprovadamente envolvidas nos desvios da Petrobras, ainda dependem de melhor apuração e de comprovação.
Mesmo que se conteste o abuso da condução coercitiva no depoimento de Lula, os demais depoimentos e as ações de busca e apreensão realizadas no dia 4 podem chegar a algum resultado de comprovação da prática de crime. Em caso positivo ele deverá ser preso. Em caso negativo, o ex-presidente e sua família serão excluídos da investigação e deverão receber atestado de idoneidade perante a sociedade.
Numa segunda hipótese, pode-se considerar que a Operação Lava Jato já tem provas testemunhais e documentais suficientes para prender, indiciar e levar Lula a julgamento, mas que, por motivos táticos, decidiu primeiro fazer uma espécie de ensaio geral – seja para poder afirmar que colheu previamente o depoimento de Lula, inclusive para confrontar com o material apurado, ou seja, avaliar a amplitude e a intensidade de reação da sociedade que a eventual prisão de Lula poderia acarretar.
Quem, onde e como pode protestar contra a prisão de Lula, qual a repercussão nacional e internacional, qual a capacidade real de mobilização do PT e de seus movimentos sociais? Neste caso, a Lava Jato agora já dispõe de informações suficientes para planejar sobre a forma e o momento mais adequado para a prisão provisória ou preventiva de Lula.
Numa terceira hipótese, pode-se considerar que a Operação Lava Jato, independentemente de ter ou não provas suficientes para a prisão, o indiciamento e o julgamento de Lula, preferiu conduzir essa parte do processo em sintonia com outras ações relevantes na atual conjuntura, entre as quais o próprio encerramento das fases anteriores da Lava Jato; o desenrolar da cassação de Eduardo Cunha; a atuação do STF nos processos dos políticos da Lava Jato com foro especial; o andamento do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff no Congresso Nacional; a crise econômica e o agravamento do desemprego.
Neste caso, fica evidenciado que além de visar os envolvidos mais direta e recentemente no escândalo da Petrobras, a Operação Lava Jato procura cumprir uma agenda política para atingir duramente os setores da esquerda, não apenas o PT, nas eleições de 2018.
O rompimento do pacto de setores da burguesia com o PT parece irreversível. O partido está atordoado, sofre com a debandada dos aliados fisiológicos. A correlação de forças do lado da direita, no Congresso Nacional, no STF e no aparelho de Estado, ganha peso diante da crise política e econômica e articula saídas cada vez mais conservadoras e regressivas. As esquerdas precisam urgentemente construir uma alternativa fundamentada na defesa dos trabalhadores e das conquistas sociais e políticas do povo brasileiro. Esse é o grande desafio do momento.