Lideranças como Erika Hilton e Marina Silva enfrentam ofensiva violenta que mistura racismo, sexismo e LGBTfobia como arma de intimidação política. Violência atinge também outras personalidades

Um recente episódio de violência verbal explícita reacendeu o alerta sobre os ataques de extremistas a figuras do campo progressista no Brasil. A ameaça pública feita pela apresentadora Antonia Fontenelle à deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) revelou a face brutal de uma estratégia sistemática que consiste em usar a violência para tentar silenciar mulheres progressistas. Em vídeo com teor racista e transfóbico, a apresentadora afirmou: “Se vier para cima de mim, eu puxo a peruca e te deixo careca”, o que representa um ataque direto a uma das vozes mais proeminentes da esquerda brasileira.
Durante críticas ao voto de Erika Hilton contra um projeto sobre crimes hediondos, Fontenelle extrapolou qualquer limite civilizatório, insinuando que a deputada “queria ser uma branca loira, só que você não é, e nunca vai ser”. A agressão revela como grupos extremistas instrumentalizam múltiplas formas de opressão para deslegitimar adversárias políticas, atacando simultaneamente identidade racial, de gênero e capacidade intelectual.
O episódio, que resultou em ação judicial de R$ 50 mil por danos morais, representa apenas a ponta de um iceberg de violência política que atinge sistematicamente mulheres negras, trans e defensoras de direitos humanos em posições de poder. Os ataques seguem um padrão que combina misoginia, racismo e LGBTfobia, direcionados especificamente a lideranças capazes de abalar estruturas de poder consolidadas.
Marina Silva
O caso de Hilton não é isolado. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, abandonou uma audiência no Senado após ser ofendida pelo senador Plínio Valério, que afirmou que “a mulher merece respeito, a ministra, não”. Silva já foi alvo de comentários como “imagine o que é tolerar a Marina seis horas e dez minutos sem enforcá-la”, proferidos pelo mesmo parlamentar. A frase sintetiza a estratégia de desumanização aplicada a mulheres em cargos de liderança.
Marina Silva acumula um histórico de ameaças. O mesmo senador já havia, em outra ocasião, dito a frase: “Imagine o que é tolerar a Marina seis horas e dez minutos sem enforcá-la”. Embora justificado como “força de expressão”, o parlamentar jamais pediu desculpas, contribuindo para clima de intimidação que inclui interrupções constantes, gritos e atitudes agressivas durante audiências públicas.
Em julho de 2025, a ministra enfrentou nova ofensiva em comissão do Congresso, sofrendo hostilidade e interrupções em audiência com ruralistas na Câmara dos Deputados. A estratégia é clara: impedi-la de apresentar argumentos e defender suas pautas ambientais através do cansaço e da humilhação pública.
Marielle
O assassinato de Marielle Franco em março de 2018 representa o ápice desta violência política. A vereadora negra, favelada e bissexual foi executada após denunciar violência policial e militar no Rio de Janeiro. Mesmo após a morte, continua sendo alvo de campanhas difamatórias que tentam ligá-la ao crime organizado, enquanto setores conservadores propagam mentiras sobre sua trajetória.
A investigação avançou em 2024 com a prisão dos irmãos Brazão e do ex-chefe da Polícia Civil Rivaldo Barbosa, apontados como mandantes. Mas os ataques simbólicos persistem, incluindo quebra de placas com seu nome por parlamentares de direita, evidenciando como a violência transcende a dimensão física para atacar a memória e o legado político.
Preta Gil
A cantora Preta Gil também integra esta lista. Em 2011, quando questionado por ela no programa CQC (Band) sobre como reagiria se um filho se relacionasse com uma mulher negra, o então deputado Jair Bolsonaro respondeu: “Eu não corro esse risco. Os meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambientes como, lamentavelmente, é o teu.”
A resposta combinava racismo e classismo, sugerindo que ambientes frequentados por mulheres negras seriam inadequados para “educação” de qualidade. O episódio ilustra como figuras públicas negras enfrentam questionamentos sobre sua dignidade e direito de existir em espaços de poder ou influência.
A análise de quem vive na pele
Para Filipa Brunelli, vereadora trans (PT) de Araraquara, no interior de SP, esses ataques representam uma reação estrutural de grupos que sentem seu poder ameaçado. “É um mecanismo social, principalmente incorporado pelos ultraconservadores, pelos fundamentalistas religiosos, para impedir que essas mulheres alcancem lugares de poder para que possa fazer de fato uma alternância de poder”, explica a parlamentar, que já recebeu ameaças de morte logo após tomar posse em seu segundo mandato, no início de 2025.
Filipa vivencia cotidianamente esta violência. No primeiro mandato, foi ameaçada ao denunciar acordos internos da Câmara. Na posse do segundo mandato, setores ultraconservadores promoveram ataques públicos. Recentemente, vereadores protocolaram projeto para alterar o regimento interno, impedindo-a de usar roupas com frases políticas. “Todo dia rotineiramente a gente passa por agressões misóginas, sexistas, transfóbicas”, relata.
A vereadora fala sobre as personalidades progressistas em espaços de poder, parafraseando a ex-deputada estadual (PSOL-SP) Erica Malunguinho, Brunelli. É uma ‘reintegração de posse’. Ela diz, se referindo à ocupação dos espaços de poder.
Ela cita também o conceito para entender a dinâmica de “corpos agressivos”. Segundo ela, existe hegemonia social branca, cisgênero e dentro de padrões estéticos específicos. “Todos os corpos que fogem dessa ótica são corpos agressivos para eles. Pessoas pretas, pessoas racializadas, pessoas travestis, pessoas periféricas, pessoas marginais”, explica.
Esta “elite corporal” tenta caracterizar mulheres progressistas como “loucas”, “desequilibradas” ou “despreparadas” nos debates públicos. “Olha o cabedal político, intelectual de nossas parlamentares e olha o cabedal deles”, desafia Filipa Brunelli, evidenciando a contradição entre os ataques e a qualificação real das vítimas.
A parlamentar ainda reforça a capacidade de transcendência dessas lideranças. “Hoje Erika Hilton é uma das vozes mais potentes da esquerda brasileira. Ela consegue pautar não somente questões identitárias, mas também questões trabalhistas, a escala 6×1, direitos de entregadores de aplicativo”, exemplifica, defendendo que corpos marginalizados podem debater temas amplos da sociedade.
Nikolas Ferreira
O deputado Nikolas Ferreira é um exemplo de como jovens políticos instrumentalizam ódio para construir carreiras. Condenado a pagar R$ 200 mil por discurso transfóbico após usar peruca loira na tribuna no Dia Internacional da Mulher, zombando da identidade trans, o parlamentar acumula histórico de ataques sistemáticos.
Em 2023, subiu à tribuna da Câmara declarando: “Hoje eu me sinto mulher. Deputada Nikole.” Continuou afirmando que “as mulheres estão perdendo espaço para homens que se sentem mulheres”. Foi condenado por transfobia contra Duda Salabert, usando pronomes masculinos e fazendo ofensas. Também publicou vídeo de jovem trans de 14 anos em banheiro escolar, sendo denunciado pelo Ministério Público.
Tática de silenciamento – mais casos
A violência segue padrões identificáveis. Manuela D’Ávila (PCdoB) enfrenta campanhas sistemáticas de fake news, incluindo montagem que a associava a facção criminosa e notícias falsas sobre “legalização do incesto”. A Record e Igreja Universal foram condenadas por veicular mentiras usando sua imagem.
A ex-deputada e família receberam ameaças de morte e cunho sexual. Em 2022, denunciou ameaças contra a filha Laura, de seis anos. “Esses ataques são extremamente agressivos e visam intimidá-la para que ela se afaste da vida política”, documenta o padrão de intimidação familiar.
Talíria Petrone (PSOL-RJ) recebe ameaças constantes por sua atuação antirracista. Jean Wyllys chegou ao extremo de renunciar ao mandato e deixar o Brasil devido à intensidade das ameaças homofóbicas, demonstrando eficácia desta estratégia de terror.
Perspectivas e resistência
Apesar da violência, Filipa Brunelli vê avanços significativos. “Nós pessoas trans somos a base de um iceberg social. Estamos conseguindo fazer com que esse iceberg emerja para que o fundo venha à tona”, usa metáfora poderosa para explicar o papel transformador de corpos historicamente excluídos na política institucional.
A vereadora observa, contudo, retrocessos preocupantes. Nas eleições de 2024, a representatividade trans diminuiu apesar do crescimento LGBTQIA+ geral. “A extrema direita cooptou pessoas das nossas comunidades para disputar eleições e seguir cartilha ultraconservadora”, alerta sobre instrumentalização da diversidade por forças conservadoras.
Não somente sobre pessoas trans, mas também sobre mulheres, negras e outros segmentos da minorizados socialmente, Filipa diz: “Prego que se destaca leva martelada. É o que acontece conosco.”
Para ela, a frase sintetiza a realidade brutal de que mulheres progressistas que ousam questionar estruturas de poder se tornam alvos preferenciais de grupos extremistas dispostos a usar qualquer método para preservar privilégios históricos.
Fonte: CUT