“Um prefeito não tem o poder de um chefe de Estado, mas podemos provocar pequenos terremotos nas consciências de todas as pessoas e de todas as cidades”. É deste modo que o prefeito da cidade de Valência, situada ao este da costa espanhola, Joan Ribó, 70, define sua postura ao oferecer a capital da Comunidad Valenciana para receber os 629 imigrantes que estavam à deriva no dia 12 de junho, no Mar Mediterrâneo.
O pequeno terremoto a que se refere salvou a vida de centenas de imigrantes de diferentes nacionalidades a bordo do Aquarius, que já havia estado na costa da Itália e fora impedido de atracar. Eram homens, mulheres e crianças, resgatados por duas ONGs – SOS Mediterrané e Médicos Sem Fronteiras – de pequenas embarcações lançadas ao Mediterrâneo para tentar chegar a algum país europeu.
É comum por esta época do ano, quando é verão na Europa, a fuga de pessoas da África, do Oriente Médio e até dos Balcãs, pois as águas do Mediterrâneo estão mais quentes e a navegação apresenta menos riscos A situação de guerra na Síria contribuiu para o aumento deste contingente.
O Aquarius, já sob o comando das duas ONGs, pediu autorização para o desembarque dos imigrantes e e primeiros atendimentos, mas teve seu pedido negado pelas autoridades italianas. Começou o impasse que se resolveu com o oferecimento do prefeito Ribó, respaldado pelo premiê espanhol Pedro Sánchez, recém-conduzido ao posto depois da deposição de seu antecessor, Mariano Rajoy.
Um mês depois, 422 imigrantes foram transferidos de Valência para outras Comunidades Autônomas ou para outros países, como a França. Para o prefeito Ribó, as soluções para a crise migratória europeia, a maior desde a Segunda Guerra Mundial, devem ser globais, mas as pequenas cidades podem participar deste processo.
Sobre a crise migratória, Ribó avalia, ainda, que considerando o envelhecimento da população europeia, os países receptores se beneficiam das pessoas que chegam, especialmente do ponto de vista econômico.
Os dias seguintes ao atracamento do Aquarius no Porto de Valência foram intensos para o prefeito, que só pôde conversar com CartaCapital por escrito dias depois. Confira a íntegra:
CartaCapital: O senhor foi uma das primeiras autoridades, senão a primeira, a oferecer a cidade de Valência para receber o Aquarius. Quais foram as motivações?
Joan Ribó: Houve uma razão primordial que é humanidade. Eu ofereci a cidade para recebê-los pensando que aquela gente teria apenas algumas horas de vida se a comunidade internacional a deixasse perdida, entregue à própria sorte no mar.
Eles não tinham comida nem água potável para mais 24 horas e não seriam, nem de longe, as primeiras pessoas que morreriam afogadas no Mediterrâneo, fugindo, numa embarcação, da guerra, da miséria, do terror que sofrem sem seus países.
Também pensei no menino, Aylan, cujo corpo apareceu sem vida numa praia turca, que um dia comoveu a todos e cuja imagem deveria ficar gravada nos olhos de todos os presidentes de todos os países.
CC: O senhor não teve receio de criar algum mal-estar diplomático com a Itália, que havia se recusado a receber o barco e seus ocupantes?
JR: Naquele momento eu pensei no mais importante, que era a vida daquelas 629 pessoas. Um prefeito não tem, evidentemente, todo o poder de um presidente ou um chefe de Estado. Porém, temos a capacidade de provocar pequenos terremotos nas consciências de todas as pessoas e de muitos países.
Não gosto de discursos xenófobos, que não trazem nenhuma empatia e humanidade. Porque, para além das fronteiras, todos os povos são frutos das migrações. Por isso, um pequeno, ou grande, terremoto na consciência europeia era necessário e eu acredito que Valência o provocou.
CC: O que o senhor pôde concluir do que se disse no Partido Popular (PP), do ex-premiê Mariano Rajoy, de que sua atitude poderia significar uma mensagem equivocada aos estrangeiros que pensavam em imigrar? Segundo o PP, sua atitude poderia ser interpretada como um “convite” para os imigrantes em potencial.
JR: As pessoas que fazem o discurso do medo fazem um desserviço à democracia e à convivência. É um terrível paradoxo que hoje em dia muitas pessoas tenham empatia por aqueles que salvaram milhares de vidas de refugiados durante a Segunda Guerra Mundial na Europa, mas ao mesmo tempo são incapazes de ter um mínimo de humanidade ao manifestarem seus discursos partidários em vez de pensarem na situação de emergência pela qual muitos países atravessa.
As migrações sempre existiram e sempre existirão. O povo espanhol sempre migrou ao longo de todo a sua história e todo o mundo deveria aprender com sua própria história para evitar os discursos xenófobos.
CC: Como se conduzirá a permanência destas pessoas agora? Quais serão os critérios que decidirão quem poderá permanecer na Espanha? A União Europeia poderá interferir?
JR: A cidade de Valencia fez a acolhida, que foi dirigida pela Generalitat Valenciana, por meio da vice-presidenta Mònica Oltra, mas foi o governo da Espanha que decidiu abrir suas fronteiras ao Aquarius.
Cada instituição tem a sua responsabilidade. O que eu espero é que a União Europeia assuma a tarefa de coordenar uma operação comunitária que atenda à emergência humanitária.
CC: Como o senhor viu as opiniões de cidadãos espanhóis que diziam que a acolhida destes imigrantes geraria um alto custo para a cidade?
JR: Eu acredito que estas opiniões não foram, absolutamente, a maioria. Na verdade, com a experiência do Aquarius observamos duas coisas importantes: em primeiro lugar, a enorme solidariedade do povo valenciano e, em geral, do povo espanhol.
Em segundo, que a condução desta recepção ocorreu de forma excelente. Na própria prefeitura, dias antes da chegada do barco, recebi milhares de ofertas de ajuda por parte dos moradores da cidade, que queriam contribuir. Foi maravilhoso comprovar a solidariedade de todos os cidadãos e cidadãs.
CC: Suas convicções ideológicas o aproximam da Teologia da Libertação. Esta proximidade teve alguma relação com sua postura na hora de oferecer Valência como local de acolhida para estes imigrantes e refugiados? Ou foi uma decisão política?
JR: Eu me considero uma pessoa progressista. O sentido da justiça social me acompanhou ao longo de toda a minha vida, tanto nos movimentos estudantis, como na vida profissional e política. A justiça social une as pessoas que lutam para transformar o mundo num lugar mais habitável, mais humano. É algo fortemente político e como dizem as feministas “o pessoal sempre é político”.
CC: Considerando a conjuntura internacional na questão das imigrações, vide Estados Unidos e Europa com suas políticas rígidas, motivadas pela crise econômica, o senhor acha que seu gesto pode significar alguma ruptura com estas políticas?
JR: Não exatamente uma ruptura, mas espero que um divisor de águas. As soluções para situações de emergências humanitárias não podem ser pontuais, mas devem ser globais. As cidades são motores e delas devemos tecer, com o nosso povo, a pressão necessária que permita a mudança no rumo das políticas dos Estados. Sejamos o ponto de partida para trabalhar no sentido da justiça universal e de respeito pelos direitos humanos de todas as pessoas.
CC: A crise econômica obrigou muitos latino-americanos a regressarem aos seus países de origem nos últimos anos. O senhor crê que estas pessoas poderão pensar que o país já pode recebê-los de volta?
JR: A Espanha é um país com um índice de população envelhecida. Os países precisam contar com uma população jovem porque o futuro depende disso e quando surge uma crise migratória quem sempre leva a pior parte é o país de origem da população migrante.
O país receptor se beneficia das pessoas que, do ponto de vista exclusivamente econômico, vão contribuir para a dinamização de sua economia. Deveríamos ter isso em conta, apesar de que agora o importante é dar prioridade aos refugiados, que foram obrigados a fugir da guerra, do terrorismo e da miséria.
Fonte: Carta Capital