Se aprovada, a reforma da Previdência Social pode significar o fim do direito à aposentadoria para muitos brasileiros, segundo especialistas. O argumento de Michel Temer, ao propor a emenda à Constituição Federal, é cobrir o chamado déficit da Previdência, estimado em R$ 149 bilhões de acordo com o Ministério da Fazenda. No entanto, ao propor maior contribuição dos trabalhadores, a reforma proposta não leva em consideração os mais de R$ 426 bilhões que grandes empresas devem à Previdência Social, segundo dados da Procuradoria Geral Nacional da Fazenda (PGNF).
Esse montante, que representa mais do que três vezes o valor do déficit, é a soma das contribuições descontadas dos salários dos trabalhadores e recolhidas pelas empresas, mas que não são repassadas ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). De acordo com estimativa da PGNF, 3% das empresas devedoras correspondem por mais de 63% da dívida previdenciária. Entre elas, grandes companhias, como o banco Bradesco, a indústria de alimentos JBS e a mineradora Vale.
Somente a Vale tem dívida apurada pela PGNF em R$ 276 milhões, mas essa é apenas uma parte dos débitos da empresa com o Estado brasileiro. A Vale lidera a lista de maiores devedores inscritos na dívida ativa da União. São R$ 41,9 bilhões, segundo lista divulgada pelo Ministério da Fazenda em 2015. Desse total, no entanto, R$ 32,8 bilhões estão suspensos por decisão judicial e R$ 8,27 bilhões estão inscritos em programas de parcelamento de débitos.
“A Vale representa tudo de pior. Ela impacta a vida das pessoas, o meio ambiente, destrói recursos naturais, faz tudo para que seu lucro não seja diminuído. O desastre de Mariana aconteceu por um crime ambiental, que a Vale cometeu para acelerar a produção e manter os lucros. Deve bilhões aos cofres públicos mas continua isenta de pagar. Enquanto isso, nossos direitos como trabalhadores são retirados”, afirma Lidiene Nascimento, militante do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Na primeira semana de março, mulheres do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e do MAB fizeram manifestações para denunciar a Vale pelo calote no pagamento da dívida pública.
De acordo com a pesquisadora Denise Lobato, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), essas exorbitantes dívidas são históricas e não há como estimar desde quando existem porque o acesso aos dados é restrito. “Também não há interesse de que sejam liquidadas. No ano de 2015, a dívida ativa da Previdência somou mais de R$ 350,7 bilhões, mas apenas 0,32% desse valor foi retomado pelo governo brasileiro. Não há interesse em constranger os devedores. O governo brasileiro não se empenha e não é apto para isso”, explica.
Para o procurador Achilles Frias, presidente do Sindicado dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), as grandes dívidas, como as da Vale, não conseguem ser cobradas porque fazem parte de um grande esquema de corrupção e financiamento de campanha, estimulado pelo governo. “As grandes empresas têm advogados fortes e conseguem manter empresas laranjas que desviam as dívidas. Por outro lado, a PGNF não tem estrutura para chegar aos poderosos empresários. Estamos sucateados e o governo não quer investir no nosso trabalho porque não quer mexer no esquema ilícito de inadimplência”, acrescenta.
Mais da metade das dívidas poderiam ser retomadas
O procurador estima que mais de 50% do estoque de dívidas da Previdência é de fácil recuperação pelo governo federal. “Isso representaria mais de R$ 200 bilhões, é um valor bem considerável se levarmos em conta a falácia do déficit. Vários pesquisadores já confirmaram que não existe o déficit. A reforma da Previdência é uma maneira de extinguir com o direito a aposentadoria e enriquecer os bancos, que vão se beneficiar com as previdências privadas”, afirma Achilles.
Denise Lobato é uma das pesquisadoras a que o procurador se refere. Em sua tese de doutorado, a professora confirmou que a seguridade social apresenta resultados positivos todos os últimos anos, desde 2007. Para ela, como a Previdência faz parte da seguridade social, não há como falar em “crise da Previdência”.
“É o próprio governo federal que faz com que o sistema vire o caos. Em 2016, o governo renunciou a receitas que somam R$ 271 bilhões, desse total, R$ 142,9 bilhões eram recursos da seguridade social. Isso equivale a 3% do PIB nacional. O governo renuncia a essas receitas em favor das empresas. Então, em resumo, faz desonerações, não cobra devedores e quer que os trabalhadores paguem a conta”, explica a professora.
Mais pobres não conseguirão se aposentar
Para Denise, a reforma da Previdência representa um brutal empobrecimento da população idosa, que não conseguirá acessar o benefício. Segundo a professora, os mais pobres não conseguirão se aposentar nas novas regras.
Uma das propostas previstas na reforma é estabelecer a idade mínima de 65 anos para homens e mulheres se aposentarem. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a idade média do brasileiro é inferior a 77 anos. No entanto, nos estados das regiões Nordeste e Norte, a expectativa de vida não passa de 73 e 72,2 anos, respectivamente. Ainda de acordo com o IBGE, a probabilidade de um brasileiro não chegar aos 65 anos é de 37%, uma das mais elevadas do mundo.
Além disso, é preciso estar empregado para aposentar e a taxa de desemprego entre idosos é muito alta. Segundo o IBGE, entre 65 e 69 anos a taxa de desemprego é de 29,3%, mais que o dobro da média nacional, que soma 12%.
Vale lembrar ainda que para os que não conseguem contribuir hoje, porque possuem renda menor que um salário mínimo, há o benefício de prestação continuada (BPC), pago aos idosos acima de 65 anos. Porém, com a reforma esse benefício só será pago a partir dos 70 anos. “A estimativa é de que em quatro anos, mais de 1 milhão de idosos não tenham renda”, acrescenta Denise.
“A reforma da Previdência representa um processo de extermínio da população mais pobre e não produtiva. O governo acredita que eles passam a ser uma despesa e querem tirar o peso das costas. É uma forma de matar sem se responsabilizar”, conclui Lidiene Nascimento, do MAB.
Fonte: Brasil de Fato