Estagnação econômica, alto nível de desemprego, precarização e aprofundamento da desigualdade social. O Brasil chega ao fim de 2019 enfrentando as consequências da crise socioeconômica que assola o país desde 2015, acentuada pelos governos Temer (MDB) e Bolsonaro (sem partido).
Em entrevista ao Brasil de Fato, o economista Márcio Pochmann avalia que, com Paulo Guedes à frente do Ministério da Economia, houve um aprofundamento da política econômica neoliberal de Henrique Meirelles, ministro da Fazenda do governo Temer.
“Com as políticas neoliberais, podemos dizer que 90% da população se encontra pior do que estava em 2014. Mas não podemos dizer isso dos 10% mais ricos, que não foram afetados por esse quadro desfavorável – pelo contrário, é o segmento que conseguiu melhorar seu padrão de vida, apropriando-se da pouca renda gerada no país”, afirma.
Como parte desse processo, Pochmann cita a Emenda Constitucional 95, que impõe um teto orçamentário aos gastos públicos, as reformas trabalhistas e Previdenciária, e a aprovação da terceirização irrestrita.
O conjunto dessas políticas criou um cenário desolador para a maioria da população. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 12,5 milhões de brasileiros estão sem trabalho. Além da escassa oferta de emprego, a taxa de informalidade entre os trabalhadores ocupados aumenta mês a mês e chegou a 41%.
Conforme a análise do economista, o processo de desregulamentação do mercado de trabalho favoreceu a “transformação do bico como ocupação”.
“As ações tomadas foram basicamente para deslocar o custo da crise para a maior parte da população, principalmente os extratos mais empobrecidos. De 2015 para cá, passamos a ter uma inflexão em que predominavam restrições a democracia, decrescimento econômico e exclusão social”, enumera.
Pochmann é enfático ao afirmar que, com o declínio da renda da maioria da população, uma recuperação econômica não está no horizonte do país a médio prazo. “Nós estamos estagnados em um patamar inferior a 2015. Não há crescimento, começa por aí. Podem falar que [a economia] está recuperando, mas isso significará talvez, a esse ritmo, em 2022 o Brasil volte a ter o patamar de produção que tinha em 2014.”
Confira entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: Qual balanço do Brasil em 2019 na área econômica?
Márcio Pochmann: Nós tivemos o ingresso de um novo governo que propôs superar o que entendia como práticas de desenvolvimento associado ao Estado, e o engajamento de uma nova macroeconomia assentada no protagonismo do setor privado.
A política econômica de Meirelles [Henrique Meirelles, ex-ministro da Fazenda] foi praticamente mantida. O que tivemos nesse primeiro ano é uma espécie de aprofundamento daquela mesma política econômica do governo anterior [Michel Temer].
O resultado disso é a percepção de que estamos no quinto ano em que a economia brasileira não conseguiu retomar o nível de atividade que havia atingido em 2014. Não há sinais de superação daquele quadro, do ponto de vista econômico e social, de 2014.
Em uma perspectiva mais ampla, chama a atenção o fato de que, neste ano, sob governo Bolsonaro, o Brasil consolidou a primeira década perdida do século – embora essa década tenha tido uma trajetória diferente entre 2010 e 2014, em que a economia combinava democracia, crescimento econômico e inclusão social.
De 2015 para cá, passamos a ter uma inflexão em que predominavam restrições a democracia, decrescimento econômico e exclusão social.
A situação da década, como um todo, é pior do que a da década de 1980. Há diferenças porque obviamente não temos a hiperinflação que o Brasil tinha, mas o quadro fiscal é pior. O quadro do mercado de trabalho também é pior em relação ao desemprego e à própria subutilização do trabalho. E a desigualdade tem crescido aceleradamente, assim como a pobreza.
O governo Bolsonaro nesse primeiro ano, não conseguiu introduzir um outro sentido que não fosse o que estamos identificando desde 2015. E, com isso, é o governo que consolida essa década perdida – reconhecendo que é uma década que teve os primeiros cinco anos em um sentido e os demais, em outro.
Os avanços da época em que o desenvolvimento estava atrelado à atuação do Estado foram perdidos com essa nova política econômica?
Essa política contempla 2015 e 2016, ou seja, contempla inclusive o governo Dilma [Rousseff]. Tivemos ali a recessão mais grave do capitalismo brasileiro. O que ocorreu com os governos pós-Dilma é que eles não conseguiram retirar o país da situação da qual se encontrava. O nível de atividade produtiva continua abaixo de 2014.
Com as políticas neoliberais, podemos dizer que 90% da população se encontra pior do que estava em 2014. Não podemos dizer isso dos 10% mais ricos, que não foram afetados por esse quadro desfavorável – pelo contrário, é o segmento que conseguiu melhorar seu padrão de vida, apropriando-se da pouca renda gerada no país.
Há medidas específicas que aprofundaram esse cenário, ou nada mais é que uma consequência conjuntural?
O núcleo condutor do neoliberalismo é o mercado que reúne as ações especulativas do capitalismo brasileiro, a especulação, a bolsa de valores, as diferentes formas de aplicação financeira.
O rentismo não foi atacado por este governo – pelo contrário, foi privilegiado em razão das medidas tomadas. Não houve sequer uma medida que atingiu esse segmento.
A exemplo das reformas que foram feitas anteriormente, como a reforma trabalhista, a terceirização e a Emenda Constitucional 95 [“Teto de Gastos”], as medidas deste governo foram basicamente para deslocar o custo da crise para a maior parte da população, e especialmente os extratos mais empobrecidos.
No ano passado, o número de desempregados chegou a 13 milhões. O índice atual é de 12,5 milhões. Existe perspectiva de melhora?
Com o nível de atividade inferior a 2014, é natural que se tenha um excedente de mão de obra às necessidades do capital. O capitalismo está operando a uma taxa menor de expansão e, por isso, não demanda a mesma quantidade de trabalhadores que em 2014.
Embora tenhamos uma leve redução na taxa do desemprego, isso está diretamente relacionado ao processo de desregulamentação do mercado de trabalho por conta da reforma trabalhista e aprovação da terceirização.
Essa desregulamentação favorece justamente a possibilidade de transformação do “bico”, que não era considerado trabalho, em ocupação. Por isso que o IBGE destaca também o aumento da chamada subutilização. Para eles, o bico não é desemprego e está associado a estratégias de sobrevivência.
De outro lado, temos a profunda expansão da chamada fuga de cérebros, que são justamente os melhores quadros que o Brasil descobriu, por esforço na educação e também da famílias em geral. Desamparados por qualquer perspectiva de ocupação devido ao corte de bolsas e outros recursos na educação e na pesquisa, esses cérebros partem para fora do Brasil. Inclusive, quando vamos analisar o comportamento e a composição do desemprego, se percebe justamente que ele cresceu mais para o segmento de maior escolaridade.
Qual o peso da reforma da Previdência na conjuntura socioeconômica do país este ano?
As mudanças na Previdência significam que os trabalhadores permanecerão mais tempo no mercado de trabalho para receberem, quando aposentados, um valor menor. É óbvio que jamais seria dito isso, porque dessa forma possivelmente a desaprovação da reforma seria maior.
A reforma da Previdência significará não apenas a retirada de direitos, mas a retirada de uma quantidade de recursos estimada em cerca de R$ 1 trilhão nos próximos dez anos. Como o benefício da aposentadoria e pensão constitui parte importante da renda e do trabalho, podemos compreender que ela perderá importância nos próximos anos.
Considerando que hoje temos um quadro de amplo desemprego e de ocupações com salários muitos baixos, podemos concluir que a renda das famílias, que é praticamente 2/3 do PIB [Produto Interno Bruto] nacional, principal componente de dinamismo da economia nacional, será mais frágil do que se encontra.
Nesse sentido, a expectativa que o país possa sair dessa situação voltando a crescer torna-se mais frágil, porque estamos diante de um modelo pós-2015, profundamente concentrador de renda. E a concentração de renda faz com que os ricos tenham baixa propensão a consumir e alta propensão a poupar.
Essa transferência de renda vai para segmentos que, de certa forma, proporcionalmente à renda, consomem menos. Se a maior parte da população com renda menor que teria alta propensão a consumir, mas tem a renda é cadente, isso significa que não teremos dinamismo e vitalidade para sustentar o crescimento. Isso que nós podemos, de certa maneira, considerar que os próximos anos serão de estagnação.
Mesmo a redução da taxa de juros não permite que os recursos disponíveis sejam orientados para o investimento. Porque, para a ampliação da capacidade produtiva, implica saber previamente se haveria consumo para permitir que os investimentos realizados gerassem o retorno do capital investido.Nós estamos estagnados em um patamar inferior a 2015. Não há crescimento, começa por aí. Podem falar que [a economia] está recuperando, mas isso significará talvez, a esse ritmo, em 2022 o Brasil volte a ter o patamar de produção que tinha em 2014
O crescimento pífio do PIB também resulta desse processo?
Crescimento econômico pressupõe ampliação da capacidade produtiva. Houve redução da taxa de juros, desvalorização da moeda, dando a entender que há estímulos a quem tem recursos para que invista internamente. Mas, como vivemos a economia do rentismo, aqueles setores que têm seus recursos aplicados no sistema financeiro trabalham com a estimativa de ganho financeiro. Quando se reduz a taxa de juros significa que sua expectativa de ganho será menor.
O que muitas vezes acontece no rentismo é que, em vez de se desaplicar o dinheiro e aplicar produtivamente – a ideia que se tinha do ponto de vista de uma economia que está crescendo –, ao perceberem que a rentabilidade financeira será menor porque a taxa de juros caiu, os setores passam a poupar mais para ter o retorno almejado.
A taxa de juros vem caindo desde 2006, e não há retorno em investimento. Geralmente, quando cai a taxa de juros, os capitalistas deixam de aplicar financeiramente e vão para a área produtiva. Porém, esse deslocamento pressupõe saber qual a taxa de retorno da aplicação produtiva. Hoje, com a insegurança da taxa de retorno, cria-se uma avaliação de que é melhor ter o dinheiro aplicado, mesmo com uma rentabilidade menor, do que ensaiar uma retomada produtiva dos investimentos.
Em 2019, também tivemos o anúncio de um pacote de privatizações. Como essa política adotada por Guedes impacta a economia do país e a população a médio e longo prazo?
Em termos técnicos, podemos dizer que o Brasil vive a armadilha da liquidez. Isso porque temos uma quantidade enorme de recursos acumulados, mas que não são deslocados para produção – embora a taxa de juros seja decrescente.
A possibilidade de desmontar essa armadilha seria que o setor público permitisse que recursos financeiros se desloquem para a compra de ativos de empresas. O que nós temos visto até agora é que a privatização que tem sido feita é mais uma desnacionalização do que deslocamento de ativos públicos para setor privado. Porque, em grande medida, são empresas estatais de outros países que estão comprando ativos nacionais.
Na cessão onerosa do petróleo, tivemos basicamente, uma ação da Petrobras. O capital estrangeiro se sentiu desestimulado para fazer esse tipo de ação. Mas a privatização está avançando na área dos direitos sociais. Na área da saúde, da educação, da assistência. Esse é o diferenciador do atual governo, em termos de receituário neoliberal, quando comparado com o dos anos 1990, nas eras do Fernando Henrique e do [Fernando] Collor, quando na verdade a ênfase neoliberal era a redução do Estado por meio da privatização.
Um diferenciador dos anos 1990 tem sido justamente a privatização de direitos. Em vez de saúde e educação serem públicas, elas passam a ser ofertados privadamente. Cabe a cada cidadão comprar no mercado, e não mais depender da oferta pública.
Esse processo também parece aprofundar a concentração de renda.
No fundo, como é um capitalismo sem dinâmica, a luta de classes – que, em geral, é no âmbito da produção – se desloca para a luta de classes do fundo público. Então, é sobre quem se apropria da renda pública, dos impostos, da carga tributária. É uma disputa de orçamento que tem sido usada para viabilizar negócios privados em vez de serviços públicos.
O que esperar do Brasil nos próximos anos?
Podemos esperar uma economia com grande dificuldade de se manter ativa, uma economia sem vigor de produção.
Até o presente momento, a propaganda tem sido muito intensa por parte da mídia, do governo, dos porta-vozes do dinheiro. Eles dizem que a parte difícil já foi feita, que é a aprovação das reformas, e que agora entraremos em um momento de ascenso e que o melhor está por vir. Há uma expectativa de que o Brasil poderá produzir resultados melhores e há uma espécie de calmaria sendo transmitida em relação a isso.
Mas, de alguma forma, a instabilidade e insatisfação social que existem hoje terão uma manifestação mais concreta à medida que os resultados esperados não aparecerem.
Fonte: Brasil de Fato