Com aglomerações proibidas pela pandemia, costumes antigos talvez sejam rememorados no aconchego da família
O menino imagina que a lua cheia acompanha seus passos. Se toma à direita ou caminha em frente, ela o segue como um balão de gás hélio, preso ao corpo por um fio. As cinco casas na paisagem erma parecem distantes do mundo: as fogueiras acesas, o fogo amarelo da lenha contrastando com a luz branca da lua. É noite do santo mais celebrado pela gente sertaneja.
Em toda casa as chamas sobem ao céu, convidando são João para descer à terra em sua noite. Mas ele nunca vem. Se vier, conta a lenda, a terra inteira arderá num incêndio. Por isso, sua mãe não o acorda, deixa que durma a sono solto.
O menino transpõe o terreiro de casa, um descampado infinito aos olhos e às pernas de criança. Precisa chegar à casa do outro lado, pedir à vizinha de terras que seja sua madrinha de São João. A velha senhora sente-se honrada e aceita. É morena, possui traços de índia, os antigos habitantes do lugar.
Esta cena comum no Nordeste agrário, em noites de São João, tornou-se rara. O campo esvaziou-se de sua gente e de seus costumes, quase todos migraram para as cidades. Pelos dados do IBGE, apenas 15% da população brasileira mora no campo.
Nesse ano de pandemia, quando as aglomerações foram proibidas e as grandes festas não poderão acontecer, costumes antigos talvez sejam rememorados, no aconchego da família.
Várias brincadeiras populares migraram para o Carnaval, algumas vieram do ciclo natalino como Boi e Cavalo Marinho. Mas a festa junina se manteve no lugar, firme, embora carnavalizada. Shows sem forró, coco ou baião atraem multidões. As quadrilhas com enredo de escola de samba atestam a mobilidade da cultura, que tudo incorpora e transforma.
Campina Grande, Caruaru, Patos, Arco Verde, Teresina, Fortaleza, João Pessoa, Aracaju e muitas cidades de médio e grande porte movimentam milhões de reais da máquina de lazer, garantindo a sobrevivência de artistas, empresários, comerciantes, hotéis, pousadas e toda sorte de negócio.
Os extensos pátios de forró, que no mês de junho lotam com pessoas à procura de dança, música, bebida, diversão e comida, agora estão vazios, reina neles um estranho silêncio, o da ausência.
A quadrilha, carro-chefe das festas juninas, surgiu nos salões da aristocracia francesa, durante o século 18. No século seguinte, tornou-se febre na corte brasileira, caindo no gosto do povo. Resta quase nada da antiga “quadrille”, apenas o francês atrapalhado do marcador.
Tornou-se dança das periferias urbanas brasileiras, espetáculo elaborado, cheio de coreografias. Os grupos quadrilheiros participam de concursos, circulam pelo Brasil e exterior, apresentam-se fora do mês de junho.
Agregam a comunidade, movimentam dinheiro, geram emprego para figurinistas, costureiras, aderecistas, cabeleireiros, músicos, compositores, atores, atrizes, bailarinos, coreógrafos, revelando e promovendo talentos.
Para além de arte, as quadrilhas se transformaram em expressão da cultura popular, fábrica de talentos. A música acelerou ao ritmo da cidade grande, tornou-se eletrônica; a dança aeróbica. Não se trata mais de um divertimento rural, até porque nem existe mais campo. A cidade passou a dar o tom da festa, o apito, a zueira, o sotaque, a ginga, a velocidade e o nervosismo.
São João tornou-se urbano, tange seus carneiros no asfalto. Mas, pela estranha contingência de uma pandemia, ele se recolheu aos sertões do céu e não quer celebrar sua festa. Desconsolado, o menino solta um balão e pede: “Sobe, sobe, balãozinho, pelos aéreos caminhos. Vai subindo, vai subindo, voa como um canarinho. Sobe longe, ligeirinho, que eu te dou belo destino. Vai na casa do Divino, acorda se está dormindo, traz aqui São João Menino”.
Fonte: Folha de São Paulo