Antes apenas quem recebia até 50 salários mínimos poderia ter salário penhorado para quitar dívidas. Agora STJ decide que penhora independe do valor do salário do trabalhador, mas há limites
A possiblidade de penhora de parte dos salários para quitação de dívidas foi reforçada após uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte julgou o caso de um trabalhador, com uma dívida de R$ 110 mil e renda de R$ 8,5 mil e determinou que 30% de sua renda sejam destinadas à quitação dos débitos. Cabe recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Com a decisão, a Corte reforça um entendimento que já vinha sendo adotado desde 2018, de flexibilização da ‘impenhorabilidade de salários’ para quitação de dívidas, determinada pelo artigo 833 do Código de Processo Civil (CPC).
A lei, até então, vedava a possiblidade de penhorar o salário de trabalhadores cuja renda fosse inferior a 50 salários mínimos, atualmente em R$ 66 mil.
No entanto, o relator do caso, ministro João Otávio de Noronha, em seu despacho, defendeu a flexibilização, desde que observados critérios de razoabilidade e proporcionalidade para o credor e devedor.
Desta forma, de acordo com o posicionamento do STJ neste julgamento, cada caso de cobrança de dívidas deve ser analisado individualmente para assegurar o pagamento e a dignidade do devedor.
“A fixação desse limite de 50 salários mínimos merece críticas, na medida em que se mostra muito destoante da realidade brasileira, tornando o dispositivo praticamente inócuo, além de não traduzir o verdadeiro escopo da impenhorabilidade, que é a manutenção de uma reserva digna para o sustento do devedor e de sua família”, disse o ministro do STJ.
O ministro ainda ressaltou que a penhora só deve ser aplicada “quando restarem inviabilizados outros meios executórios que garantam a efetividade da execução (…), e desde que avaliado concretamente o impacto da constrição [penhora do salário] sobre os rendimentos do executado”.
Especialista explica
Consultado pelo portal da CUT sobre a possiblidade de penhora de salários de trabalhadores, inclusive com baixa renda, o advogado especialista em Direito Civil, Carlos Coninck Jr, sócio do LBS Advogadas e Advogados, explicou que, com o entendimento recente do STJ, em ações dessa natureza – de cobrança de dívidas na Justiça – é preciso verificar a realidade financeira do devedor.
“É preciso entender o quanto ele tem de renda e quanto destina dessa renda para a manutenção de orçamento, ou seja, o quanto ele compromete de seu salário para sobreviver, levando em consideração gastos fundamentais como alimentação, saúde, educação, entre outras”, diz o especialista.
Coninck Jr. diz ainda que para salário médios e altos, “se não há comprometimento da renda, sobre o salário líquido, isso vai tornar a penhora possível”. Mas ressalta que “cabe à parte devedora provar que não é possível a penhora do salário porque há o comprometimento da sua renda, seja por gastos do dia-a-dia, questões de saúde ou outros encargos, com necessidade de demonstrar [provar] no processo que a penhora será prejudicial ao seu sustento”.
Portanto, as decisões judiciais deverão ser baseadas em uma avaliação do Juiz do caso sobre a realidade do devedor, a fim de determinar a ‘de razoabilidade e proporcionalidade’ citadas pelo ministro do STJ, no caso em destaque.
Jurisprudência
A decisão do STJ no caso do trabalhador é baseada em outras decisões já tomadas tanto pela Corte como em tribunais estaduais e federais. “Temos um precedente que é aplicado desde 2019 e que está sendo reafirmado neste momento.
Exemplo de que decisões vem sendo tomadas nesse sentido ocorreu em Boa Vista (RR), no mês de abril. De acordo com informações levantadas pelo Portal Jota, uma mulher, credora em uma ação de indenização por danos morais, solicitou a penhora do salário do devedor.
Ao analisar o pedido, o magistrado ressaltou que a impenhorabilidade do salário, embora seja a regra, deve ser analisada diante das peculiaridades do processo.
“Diante da inexistência de bens do devedor passíveis de penhora, não resta alternativa senão a penhora de seus vencimentos”, disse o juiz de Direito Elvo Pigari Júnior, da 6ª vara Cível de Boa Vista, que fundamentou a decisão no entendimento do STJ.
Na sentença, determinou a penhora de 10% do salário líquido do devedor, “porquanto o percentual não compromete a subsistência, nem afeta a dignidade da pessoa humana”.
A lei
O artigo 833 do Código de Processo Civil determina que todos os rendimentos que serviam de sustento do devedor e de sua família são impenhoráveis, com exceções, como os rendimentos acima de 50 salários ou quando se trata de dívidas de pensão alimentícia.
O advogado Carlos Coninck Jr explica que por anos essa regra se manteve absoluta e que o devedor não poderia sofrer qualquer constrição de seu salário, mas esse conceito vem mudando ao longo dos tempos.
Ele diz que o precedente (o caso em destaque nesta matéria), não é novo, “apenas reitera um posicionamento que vem sendo adotado desde 2018 e que vem muito forte a partir de 2021, no período da pandemia”.
Pode ocorrer, portanto, diz o advogado, a penhora quando a renda está “abaixo de 50 salários mínimos, ainda que não seja dívida alimentar o objeto da ação. Pode ser por qualquer por dívida desde que se verifique que, no caso especifico, não haja o comprometimento da subsistência do devedor”.
Lei protege os superendividados
Por outro lado, os trabalhadores têm na própria legislação um outro mecanismo de defesa. “Aliado ao entendimento da possiblidade de penhora do salário, temos a Lei dos Superendividados, aprovada em 2021 e que alterou parte do Código de Defesa do Consumidor, delegando ao Juiz a possiblidade de impor um acordo entre as partes”, diz o advogado.
“Caso seja verificado o superendividamento, ou seja, quando a pessoa tem compromissos que ela não consegue arcar sem prejuízo do seu mínimo necessário para sobreviver, a lei ajuda como contraponto à penhora do salário”, explica Coninck Jr.
Com a lei, o Juiz determina uma negociação ainda que a parte credora não queira aceitar os termos, ou seja, a negociação em si. A lei observa os princípios da razoabilidade para a quitação da dívida.
A Lei (14.871/2021), que define como superendividamento a situação em que o consumidor de boa-fé assume sua impossibilidade de arcar com todas as dívidas que contraiu, sem comprometer o mínimo para sua sobrevivência, também prevê que o devedor possa ter um plano de pagamento de todas as suas dívidas juntas, que seja compatível com suas possibilidades.
Nível de endividamento dos brasileiros
Em 2022, o endividamento dos brasileiros bateu recorde e atingiu 77,9% das famílias de todas as faixas de renda.
O percentual é sete pontos maior do que o registrado no ano anterior (2021), quando 70,9% estavam endividadas. O ano de 2022 apresentou o quarto crescimento da inadimplência consecutivo e o maior já observado na Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), divulgada em janeiro desde ano pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
Os vilões são os mesmos: cartão de crédito, cheque especial e cheque pré-datado. Outras formas de endividamento estão relacionadas ao crédito consignado, crédito pessoal, carnês, financiamento de carro e financiamento de casa.
– Cartão de crédito: 86,6% das dívidas
– Carnês: 19%
– Financiamento de carros: 10,4%
A inadimplência também bateu recorde e chegou a 28,9%. Isso quer dizer que a cada dez famílias, três atrasaram algum pagamento em 2022, segundo a pesquisa. O número é 3,7 pontos percentuais maior do que o registrado em 2021.
A proporção de famílias com dívidas atrasadas foi mais expressiva entre as de menor renda (32,3%). Essa cama foi a que mais sofreu com a alta abrupta da inflação, especialmente nos grupos de gastos essenciais como alimentação, saúde e habitação.
Entre as famílias que recebem mais de 10 salários mínimos mensais (R$13.200), os números apresentados na pesquisa caem praticamente pela metade.
Fonte: CUT