Conversamos com a socióloga e ouvidora Geral da Defensoria Pública do estado da Bahia, Vilma Reis, sobre os enfrentamentos históricos da população negra.
O dia 20 de novembro é marcado nacionalmente como o Dia da Consciência Negra. Qual a importância e significado desta data?
Em plena ditadura militar, com bastante dificuldade por ser um momento onde não era permitida a realização de reuniões com caráter de organização dos trabalhadores, o Movimento Negro Unificado – MNU, em 1978, conseguiu se reunir no Instituto Cultural Brasil e Alemanha, na Bahia, por possuir o status de embaixada, para reconhecer o 20 de novembro e não o 13 de maio, como um Dia Nacional de denúncia do racismo e para que fossem lembradas as lutas do povo negro, toda batalha feita em Palmares e pós Palmares.
A sociedade brasileira precisa aprender na escola e fora dela, que a vitória do povo negro contra a escravidão não foi uma dádiva de nenhuma princesa e sim fruto de muita luta e de resistência. Essa data é um direito à memória da população negra brasileira, que toma caráter legislativo a partir da Lei 10.639/2003, que regulamenta a educação das relações étnico raciais e o direito ao estudo da cultura afro brasileira e africana. Deve-se destacar que esta é a primeira data e o primeiro marco na constituição a se aprovar no Brasil, celebrando também o dia de um herói negro nas Américas, Zumbi dos Palmares. Um reconhecimento demorado e fruto de muita batalha.
Em Palmares foi realizado um projeto que no Brasil muito se fala, mas pouco se coloca em prática, a construção sociedade racialmente democrática, onde todos podiam viver livremente e produzir para coletividade, com maioria negra, e que também acolhiam brancos pobres, indígenas e todos aqueles que se colocavam contra o poder colonial. Diante disso, nós brasileiros temos que ter orgulho da luta do povo negro para derrubar o escravismo no Brasil, o último país das Américas a acabar com a escravidão, que não pode deixar de ser lembrada como um horror que impactou a vida das pessoas sequestradas do continente africano para as Américas, sendo fundamental que as novas gerações tenham ciência disso.
O Brasil tem como berço do seu desenvolvimento a escravidão, e os impactos disso reflete ainda hoje nas relações de trabalho. Qual a condição da população negra hoje no mercado de trabalho?
Podemos iniciar lembrando que todo o dinheiro acumulado com os ricos de hoje está manchado com o sangue dos escravizados. Todo esse acúmulo só foi possível por meio da escravização somada à exploração de todos os trabalhadores nesses 130 anos pós abolição. O escravismo deixou marcas na sociedade brasileira, que ainda hoje batalhamos para superar por via das políticas de reparação, mais conhecidas como cotas ou ações afirmativas.
As muitas lutas nas irmandades negras, nas congadas, nos quilombos, em cada mocambo, em cada lugar em que se organizou a resistência, no âmbito urbano ou rural, possibilitaram a construção de uma outra relação de trabalho no Brasil. Ao chegar no século XIX, tentou-se imprimir o grande engano à população negra, de que aqueles trabalharam 355 anos de graça, não iriam trabalhar de graça. No entanto, ao invés de integrar esses trabalhadores a esse novo cenário, passaram a importar os europeus, para impulsionar o capitalismo brasileiro, muito ainda confundido com as relações feudais. Dessa forma, os negros foram desprezados nesse novo processo, sem nenhum direito e reparação.
Esse é um ponto importante a se demarcar. Em 1849, metade da população do Rio de Janeiro, grande parte da população da Bahia, do Maranhão, de Pernambuco, de Minas Gerais, do interior de São Paulo, incluindo toda a região no Vale do Parnaíba – que produziu as grandes riquezas dos atuais industriais paulistas, era escravizada. No censo de 1872, 55% da população brasileira era negra. E quando chega o final do século XIX esse país tenta se livrar do que restou de trabalho escravista sem garantir nenhuma indenização, sem garantir nenhuma política pública para a população negra e passa a explorar a mão de obra imigrante. Somado a isso, 38 anos antes da abolição as terras brasileiras foram divididas entre os brancos da colônia. Na Bahia e para o nordeste, particularmente, isso aconteceu de forma mais danosa, devido a mudança da capital da Bahia para o Rio de Janeiro, em 1860. O Nordeste foi largado a sua própria sorte, e cada fazendeiro criou o seu próprio governo, sobrevivendo somente do trabalho escravista.
Antes de se criar a Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, não tinha uma única agência de política pública para a população negra. Só a partir da Constituição de 1988, que o Brasil criminaliza o racismo e todas as suas práticas danosas. Não existiram ao longo do século XX nenhuma legislação para inibir as práticas de racismo no mundo do trabalho. Por todos esses anos a população negra teve o acesso limitado ao mundo do trabalho. Podemos notar o quão recente é essa questão, quando já agora no início do século XXI a Febraban foi chamada para um termo de ajustamento de conduta, em 2003, devido ao setor bancário, vergonhosamente, não integrar a população negra em seus postos de trabalho. Quando tem trabalhadoras e trabalhadores negros eles estavam ou estão na compensação, escondidos e não como cartão de visita dos bancos. Não são caixas, não estão para o atendimento, não estão em nenhum dos lugares visíveis.
Em pesquisa do Instituto Ethos, em 2005, mostraram que se tem um setor que precisa superar a questão do racismo é justamente o setor bancário. Essa mesma pesquisa apontou que entre as 500 maiores empresas do Brasil, incluindo os bancos privados, só 8% dos executivos acreditavam na possibilidade de empregar uma pessoa negra. Isso torna possível a gente entender a ausência da população negra nesses lugares de trabalho.
É possível ver pessoas negras massivamente em trabalhos informais e os mais insalubres. Esses são os trabalhos em que as mulheres negras ocupam, mesmo quando muitas delas já alcançaram um alto nível de educação.
Em pesquisa a Confederação Nacional dos Bancos indica que o primeiro medo das mulheres neste setor era a questão do assédio sexual e moral, e o segundo medo era a iniquidade salarial. Para nós mulheres negras, o que afeta especialmente é ainda a tentativa ascender nesse espaço. A Febraban precisa ser chamada para um debate nacional e consequentemente a Confederação, que precarizam todos os trabalhadores, e para a população negra ainda oferecem a invisibilidade absoluta e o não acesso a esse espaço no mundo do trabalho.
A desigualdade racial em nosso país é violenta e visível. Qual a importância das políticas afirmativas e do combate ao racismo nesse contexto social?
No Brasil, nos últimos 20 anos, o avanço que tivemos foi no campo da política de ações afirmativas. Nas universidades brasileiras, em lugares como a Universidade de Brasília – UNB, em levantamento de 1999, em alguns cursos entendidos com prestigiados, não havia nenhuma estudante negra ou negro, e hoje são mais de 150 mil pessoas negras no chamado campo do ensino superior. Essa é a primeira geração, e eu faço parte dela, de nossas famílias a alcançamos esse espaço.
Ao superarmos o argumento de que a população negra não ocupava determinados locais no mercado de trabalho por não ter graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Temos agora o desafio de implementar políticas de ações afirmativas no mundo do trabalho. Hoje é possível encontrar homens negros e mulheres negras com titulação para ocupar qualquer espaço. O que resta agora é romper com a conivência violenta do Estado brasileiro através do racismo institucional, nas empresas públicas ou privadas.
Precisamos de políticas afirmativas em qualquer processo de seleção para inserção no mundo do trabalho e este é um debate que o setor bancário tem que enfrentar. Assim como enfrentou sobre a questão de gênero com maestria, o que possibilitou que muitas mulheres ocupem postos de trabalho bancário. No entanto, ainda existe uma lacuna para a questão racial.
Outra questão que faço questão de frisar, é que as ações afirmativas nas seleções, desde o concurso público até a vaga mais desprestigiada dentro de uma empresa pública ou privada, precisa ser integrada às bancas de verificação para que não haja fraude.
Dentro da Ouvidoria Geral, trabalhamos conseguimos instituir, na última atualização da Lei Orgânica da Defensoria Pública da Bahia, 30% de cotas para negros e 2% de cotas para os povos indígenas, e seguimos lutando para que essas cotas sejam aplicadas com banca de verificação em todos os processos seletivos da defensoria, seja pro cargo de defensora ou para cargos dentro da instituição, REDA, estágio, entre outros. Queremos que seja concreta a vigilância democrática institucional em todas as instituições públicas e privadas do país. Se não for assim, não temos como superar o racismo na sociedade brasileira.
Outro campo que não podemos esquecer é o da comunicação. Se não mexermos com a produção de conteúdo, para enfrentar os estereótipos e as segmentações que afetam a humanidade da população negra, a gente não tem como virar o barco.
Segundo dados da Unicef, no Brasil, quem é negro ou pardo tem três vezes mais chances de ser morto. Qual a relação do genocídio da população negra e as políticas institucionais de combate a violência?
É basilar ligar essa questão da violência com essa banalização institucional em torno da vida da população negra, porque é isso que realmente está acontecendo. Quando pensamos em localidades como o bairro Bruno Bacelar, em Vitória da Conquista, onde desde 2013 muitos jovens estão tombando a partir da chamada “guerra às drogas”, precisamos notar que, obviamente, há uma segmentação e manutenção das regras da colonização, a partir da continuidade da desumanização da juventude negra, das mulheres negras e dos homens negros.
A vezes parece uma equação fácil: a polícia atirou e matou. Só que a polícia não está sozinha nesse genocídio da juventude negra, nessa situação de humilhação e violência aberta. Os outros poderes também fazem parte. A exemplo do Poder Legislativo, que precisa fazer outros gestos ao invés de aprofundar a proposta de populismo penal. Porque esse populismo penal sempre está ligado a violação de direitos da população negra. Quando se trata de jovens brancos e de classe média, a população brasileira constrói outras respostas, mas quando se trata de juventude negra, que já foi abandonada pela institucionalidade desde o seu nascimento, uma parte da sociedade, lamentavelmente aponta para as propostas mais violentas, mais racistas e mais covardes. Esse populismo penal, que ajuda o superencarceramento, sempre apresenta como alternativa a redução da idade penal e das execuções extrajudiciais. E essas são propostas sempre contra a juventude negra, não contra nenhuma outra parcela da juventude.
A juventude negra é vítima e não podemos encará-la como algoz. É importante dizer que quando essa juventude está formando as fileiras do que é combatido pela chamada política de guerras às drogas, ela simplesmente foi abandonada, largada, não teve políticas educação, saúde, lazer, cultura. Ela fez parte de uma escola cuja a disciplina com maior carga horária se chama horário vago. Muitos jovens vêm até a ouvidoria para denunciar o que está acontecendo em suas comunidades, a falta de professores de história, química, português, biologia, física, artes, inglês e que a rotina normalmente inclui, dois dias sem aula e nos outros dias aulas entre 7h30 e 9h. Isso é sabotagem à vida da juventude, que torna mais fácil para os gestores, covardemente, jogar nas costas da juventude a responsabilidade pela chamada “guerra às drogas”.
Um outro aspecto que é importante abordar é a violência contra a mulher negra, que estão entre as mais assediadas e violentadas, até mesmo no espaço de atendimento à saúde. Como o racismo incende também nesses casos?
É importante a gente falar dessa simbiose perversa entre racismo institucional e violência obstétrica e outras violências que a gente pode olhar no aspecto da saúde. Obviamente, até mesmo a matança de juventude negra e as condições de inserção no mundo do trabalho devido ao seu pertencimento a uma etnia, levam as mulheres negras a um profundo adoecimento. E esse adoecimento, muitas vezes, não é acolhido no serviço de saúde, que além de não está preparado, não busca forma de se preparar para acolher essas mulheres diante dessa situação tão dramática.
Para mudar esse cenário precisamos entender um outro contexto. Na Bahia, as políticas precisam, preferencialmente, ter como foco as questões de gênero, raça, territorialidade e geração. Com esses quatro indicadores teríamos como dar prioridade nas políticas públicas, principalmente no mundo do trabalho para as mulheres negras. Porque é preciso lembrar são elas que sustentam as nossas comunidades. Se essas mulheres estiverem se sentindo acolhidas, respeitadas, no mundo público e privado, terão força para segurar a onda de muita coisa. Mas se elas vão a um serviço básico de saúde e elas simplesmente são tratadas como absolutamente nada, a coisa fica muito mais difícil.
As opiniões expressas no artigo não refletem, necessariamente, o posicionamento da diretoria do SEEB/VCR.